quinta-feira, 3 de maio de 2012

Ponto de Fuga: ...Onde A Estrada Acaba (VI)


Recuperava ainda os sentidos lentamente e antes de sequer abrir os olhos, amargava o sangue ainda fresco nas gengivas. A porta da frente escancarada deixou entrar o bafo quente que me fez levantar de uma vez. Derreado e ferido no orgulho, receava agora qualquer estalo nas costelas, pelo menos aquele que me impedisse de chegar ao telefone. Teria de haver um telefonema. Não. Pregada à ombreira da porta com um punhal, num papel com o número, a mensagem estava entregue. Estes tipos eram negociantes à séria, para seguir à risca. -"Agora já não és tão esperto! Que queres? Queres a tua mulher de volta?" gritava do outro lado do telefone o Comanche - "Que manobra foi essa no Diner?! O teu trabalho é entregar o pacote! Queres entrar na folha de pagamentos, é isso?". Só me restava implorar e suplicar pela segurança de S., enquanto ouvia as suas provocações. Sim, a este ponto rezava para nunca ter acordado dos efeitos da droga e tudo isto não passar de um sonho febril.

Abri a caixa, finalmente. Continha um cachimbo, mas procurei dentro do embrulho e lá estavam os papeis, manifestos de carga emitidos pelo Estado do Texas. A minha tarefa era entregá-los ao Armazém na Alameda Avenue, aqui em El Paso. Deveria depois receber novos documentos e entrega-los em Red Rock, no Red Rock Motel, onde - "É ao fim da Main Street e CASO CUMPRAS TUDO À RISCA, até à alvorada de amanhã a encontras viva". Depois de tudo o que tomei por garantido, restava a estrada, essa terra prometida agora nossa salvação.

Pisei o acelerador e larguei a embraiagem, naquela fracção de segundo entre movimentos o 442 faz o mundo tremer até desaparecer numa nuvem de pó. A primeira tarefa afigura-se fácil e rápida, no armazém seguem, como formigas no carreiro, sujeitos de tez escura carregando caixotes dos camiões para a zona de descarga. "Boa tarde forasteiro. Faça favor de dizer." inquiriu o indivíduo à minha frente. Suiças e cabelo grisalho escapando-se por baixo do boné, baixa estatura e aparência afável ilibavam Harry de qualquer convivência com actividades criminosas. - "Fiquei de entregar pessoalmente estes manifestos de carga, onde posso encontrar o responsável?" mal acabei a pergunta já a resposta saia cuspida - "Vamos lá para dentro miúdo. O índio não gosta destes negócios debaixo de sol. Queima, se é que me entendes".

Aqui começam as complicações, aquelas tão inesperadas e indesejáveis quando a vida quem mais amamos está em causa: Os documentos estavam entregues, mas devido ao seu atraso, teria de entregar a cópia forjada ao camionista que me aguardava numa estação de serviço em West Odessa. Quando está tanto em jogo é complicado racionalizar para procurar a falha no plano e quando não consegues encontrar a falha no plano, simplesmente, falharás. Por muito que conduzisse como fugido do inferno, cortando curvas e batendo no vermelho mais vezes que menos, estava demasiado exposto.

O Shooter's Gas and Grill em West Odessa era uma paragem de camionistas no meio do deserto e tirando umas dunas a bons metros, bem como dois ou três poços de petróleo no horizonte, não estava rodeada por nada. Ora, não seria aqui que nos iam apanhar, no céu aberto e ainda à luz do dia. Seria já na noite escura quando investia a cerca de 200 kms por hora em direcção a Bastorp. Cansado e com mais olhos no relógio que na estrada, pensando nela, sofrendo por ela na angústia de não saber, deixado com a ideia de ter sido engolido por uma trama maior que nós os dois. Ao fundo piscam as luzes azuis e vermelhas: estrada cortada, fim da linha e todas as metáforas que não me passaram pela cabeça por ter encontrado naquele borrão de cor lá ao fundo a figura do desespero...

Pé a fundo no travão e o carro afunda e contorce-se no asfalto, em câmara lenta, a suspensão desce junto às rodas, inclinada de sobremaneira para a direita e centrifugamente guiado pela traseira encontro-me paralelo à barreira policial... largo o travão e piso o acelerador novamente para ganhar aderência e enfiar a toda a velocidade pela estrada de terra batida que desviava do caminho. A poeirada levanta em nuvem, embatendo nos faróis dos meus perseguidores. Forma um efeito de cortina, encadeando-os para os cegar em seguida e logo que a transpõem mergulham no breu. Despistei-os, mas estava demasiado perto de Red Rock para arriscar o regresso à estrada principal. Circulando erraticamente pelos trilhos do gado e caminhos secundários adjacentes às quintas da vizinhança, seguro-me ao volante, ignoro os solavancos e procuro a cada curva o Red Rock Motel.

O pórtico lia em letras de neon fundidas "Motel", só isso. Rachas no pavimento e as marcações do estacionamento secas e desvanecidas não logravam distrair o viajante do ar de abandono do edifício destruído. Em redor não se ouve vivalma e corridos alguns minutos decido aventurar-me. A luz do único poste lá fora passa em feixes de pó pelos buracos na parede, buracos de bala aparentemente. Passo a passo percorro a sala até tropeçar e sentir a picada na cabeça, ou talvez tenha acontecido ao contrário. Derrubado, volto a mim apoiado nos destroços de uma mesa de café e levanto a cabeça para ser surpreendido por uma sombra de uma pessoa, estática na ombreira da porta.

- "Quantas estradas tem um homem de percorrer... até admitir que está perdido?" proferiu a figura cadavérica do Sargento Thomas Hawkes e continuou, enquanto eu assistia atónito e em choque - "Sabemos quem és tu Kurt Stone, mas quem és mesmo tu? Um agarrado a querer subir na vida? Trabalhas para o J.? ...sejas lá quem fores tenho a agradecer-te por esta operação. Foste o sabotador... depois do que se passou aqui da última vez o Capitão Harding não queria arriscar a vida de mais um infiltrado. Sim, o mesmo que deixaste apeado naquele Diner em Benson: Elrod. Há semanas que sabíamos do vosso negócio da Califórnia, só nos faltava poder de fogo. Os manifestos que andaste a entregar foram a chave para voltar a por estes tipos na choça." disse enquanto adoptava uma postura altiva e arrogante. Sabia que me tinha usado e da injustiça que pendia sobre mim e, principalmente sobre S. - "Onde está a rapariga? ela não tem nada a ver com isto! Deixa-me vê-la!" insisti, agarrando-o pelo braço para ser derrubado com um murro no estômago em seguida. - "Não me toques!" - mais calmo, ajeitando a manga da camisa, confessou: - "Lamento ter de ser eu a dizer-te isto, mas ela já estava morta quando chegámos, Eddie "O Comanche" executou-a quando confirmou que tinhas feito o trabalho...".

Nesse momento entraram dois agentes e seguraram-me pelos braços, enquanto Hawkes me olhava impassível, a sua cabeça calva e as linhas do rosto como rastos de navalhas, movendo-se e dobrando-se. Ele falava, conseguia ver os lábios descendo e subindo, numa estranha dança hipnótica. No entanto, não o ouvia. Levantaram-me do chão como se pegassem numa mala de viagem, arrastaram-me até à rua e diante de uma maca, uma qualquer maca como se vê nos filmes, alguém destapou a coberta e lá estava, inerte, sumida e sem expressão, Sarah Anne Ralston: o princípio e o fim das minhas viagens.

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