quinta-feira, 31 de maio de 2012

Os Olhos do Sul: I - Rude Despertar


Cinco anos depois, esfacelado pela solidão e trucidado pela culpa, Kurt caminhava lentamente pelo corredor. O guarda Petterson seguia-o, não o escoltava, seguia-o. Em passo firme e pesado percorriam o corredor. Grades e gradeamentos multiplicavam-se em paralelo com a parede de betão, friamente novos para ele, que só tinha conhecido o pátio e a solitária no cárcere em Huntsville. Queria dizer-vos que vi uma figura ou um vulto para o começar a descrever, conferindo-lhe qualquer misticismo barato ao  jeito dos filmes, mas quando Kurt surge no raio de visão é impossível não distinguir os traços à partida: estatura média; cabelo negro, tal como se duas vassouras siamesas tivessem procriado com um espanador; olhos profundos e castanhos claros; e a barba irregular, mas grossa em redor do seu maxilar quadrado, fugindo para o queixo. A prisão teria-o mudado por certo, no entanto seria a liberdade que lhe tomaria a alma.

"Os heróis morreram no dia em que o homem inventou a pólvora" - afirmou solenemente Thomas Hawkes na penumbra da sala de visitas. Os seus olhos brilhavam quase tanto como as correntes de aço que algemavam Kurt, continuando - "sabes que alguns membros dos Steer Kings estão a ser sugeridos para uma amnistia? O Governador vai a eleições e alguns nomes apareceram em cima da mesa. Sabemos que o teu tempo aqui está a chegar ao fim e seria um infortúnio que fosses procurar os tipos perdoados pelo Estado e, à boa maneira do faroeste, encontrasses algum sarilho que deitasse estes anos todos por água abaixo". Kurt ouvia impassível. Os seus nervos, como espasmos, reagiam violentamente,  ao escutar na voz do Marshall, o mais leve tom de paternalismo falso. Hawkes não queria saber dele - tinha outros planos e esta conversa, evidentemente pensada, faria parte disso. Como o mais frio dos assassinos escudava a raiva por trás de um exterior calmo. Todos estes anos na solitária aperfeiçoaram essa sua faceta, moldando-a irreversivelmente à personalidade.

"Nunca apanharam o Comanche, sabias? Estes tipos vão levar-me até ele... Não é pelas mães que vão passar a semana no cabeleireiro para assistir ao discurso do Governador na libertação dos filhos. Esses filhos... e essas putas que os lançaram ao mundo são capazes de estragar tudo o que temos feito, para manter o pobre coitado que paga os impostos descansado à noite. Tu cumpriste a tua parte e fizeste por trazer descanso à sua alma... agora é a minha vez e lidarei com eles da maneira que mais me aprouver. Não te metas no caminho, percebes?" Proferiu, firme, enquanto deixava cair as palmas das mãos sobre a mesa. 

Onde qualquer um via impassibilidade, Hawkes irritava-se com a apatia de Kurt. Não o conseguia ler correctamente, no seu mundo era imprevisível, talvez tivesse até sucumbido à loucura depois de anos fechado em solitária. "Naquele julgamento todos sabíamos que eras inocente. Foi uma farsa teres dito que estavas com eles... A justiça não era para ser utilizada a teu mando e não foste tu que a mataste, caso estejas a fritar conclusões nessa cabeça louca." - depois de uma longa pausa continuou "O teu tempo está a chegar ao fim e o Tio Sam quer-te num programa de protecção... Eu dei-lhes uma ideia: Vais sair daqui de mansinho, a um mês de hoje, vais encontrar-te com um sujeito em Arab, Alabama. Este tipo, que dá pelo nome de Gutterson, vai ajudar-te. Vais direito ao Centro Cristão de Arab e perguntas pelo Gutterson. Percebeste? Ele tem tudo o que precisas e no dia que saíres os guardas devolvem-te a roupa com um bilhete de ida no bolso das calças. Se me estás a ouvir: a vida é tua, faz o que quiseres." Seco e directo, terminou e levantou-se da cadeira, saindo da sala como se nunca tivesse lá estado. Kurt permanecia imóvel no escuro. Um, dois, três, quatro segundos e o guarda Petterson entrou para o acompanhar, de novo, pelo corredor e até à cela.

Uma luz solitária, um pequeno foco, entrava por entre as grades e reflectia uma forma estranha na parede. Meia-noite. Podia ouvir-se numa voz carregada, profunda e inerentemente bruta: "O que achaste dele hoje, amor?" - "Normal?! Não quero ser isso, já não sei ser isso! Estamos bem assim...", engoliu e decidiu, resoluto "Se é isso que queres, vou para lá, mas é «normal» que vá haver sangue... ele não está a contar tudo!". Em breve, o mundo voltou a sossegar, mergulhando a cela no breu. Kurt estava irascível, não conseguia manter-se imóvel no colchão, tantos anos depois a perspectiva de voltar a ver o exterior assustava-o. Não, não era isso. Tremia ao pensar num espelho, algures num motel, na casa de alguém ou numa estação de serviço onde contemplaria o seu reflexo a escassos metros de outro ser humano e teria de deixar se olhar como a um animal enjaulado. Na sua ideia jamais seria livre.

Os trinta dias seguintes passaram como os anteriores e os outros antes desses. As manhãs eram passadas a fazer exercício, primeiro na cela, depois no pátio. A aquele velho edifício era o local mais a leste do paraíso ao cimo da terra, tão permeável ao calor que era normal morrer-se por desidratação. Na sombra, o efeito de estufa era assustador ao início, mas chegar ao pátio ao meio-dia e ser atingido pelo sol ardente... provoca alucinações. Sarah apareceu-lhe nesse dia, ao cimo da barra de halteres "Estou tão orgulhosa de ti. Estes anos todos acabariam com qualquer um, mas tu superaste. Estás forte... olha para ti. Não tenhas medo de deixar isto, este desterro, este inferno. Há uma vida à tua espera, independentemente das promessas que fizemos, nada se esgota no sofrimento. Prova que és capaz de fazer melhor, parte a pedra e volta a ser carne." - Os braços doíam-lhe de tanto tempo suspensos no ar e o suor descia-lhe pela testa queimando-lhe os olhos. No entanto, segurava o haltere como se fosse parte do corpo. As paredes de tijoleira vermelha só lhe podiam tirar o ar, porque a tenacidade haveria de as transpor.

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