sexta-feira, 2 de setembro de 2011

Excerto


Com um gesto seco bateu, sem querer, com a porta do quarto. Perseguido por fragmentos da sua conversa com o (agora defunto) procurador. "Que sentimento estranho... - não o conhecia até ao dia de hoje, no entanto, sinto pesar por aquela pessoa", pensou, impondo-se a um luto moral por alguém que não conhecia. Devia até causar-lhe indiferença, por tudo o que ouvira ao jantar. O seu amigo havia tido a sua quota-parte de aversão a este homem, ou talvez o respeitasse, sem mágoa pessoal nem rancor. "A adversidade assegura o mérito da conquista, tal como o herói não existe sem a sua Némesis...", sorriu considerando o ridículo de tais considerações. Resolveu apagar a luz e deitar-se, já que sono tardaria a chegar nessa noite.

Os reposteiros balançavam na janela do quarto e a quietude da noite amplificava todos os seus pensamentos. Como a um louco surgiu-lhe um sopro ao ouvido. Crescendo, tornou-se uma voz. Passavam-lhe diante da vista as memórias desse dia, como um carrossel desgovernado. Naquele transe hipnótico e à medida que perdia foco nas imagens, a voz tornava-se nítida. Não era uma canção, no entanto, tinha melodia. Era um poema. Tudo fazia sentido:

Suavemente em direcção às rochas...
Vem, surge como vento provando deste mar revolto.
Na sombra do sol da temperança,
entre as escarpas do caos e da bem-aventurança.

Com a graça de Deus, zarparam o Valentim e o Falcão,
na sua envergadura se curvaram à maldição.
Do que o sangue dos homens tirou ao Conde,
Reduziu a cinzas o filho do trovão.

No colo do seu porto maldito se perdeu a sua raça,
Sem anjos por perto caiu sua graça,

Dormindo no fogo em águas frias,
se prostrou para ver,
as fugidas, escapulidas e bem erguidas,
Niña, a Pinta e a Santa Maria.

"DORME E CALA-TE!"

Ao raiar da manhã, contorceu-se e deitou o braço sobre os olhos, espreguiçou-se e voltou-se na cama. Coçava-se nas partes, voltava-se outra vez e por mais uma vez tapava a vista com torpor da luz. Cerrou os dentes, levantou-se de súbito afastando os cortinados, só para descobrir que a janela não tinha persiana. Sentou-se, corcunda, à beira da cama durante cinco minutos. Por fim assumiu a derrota. Acordara.


*Grace Dieu

domingo, 5 de junho de 2011

Crescente Passear

"...o amor quebra-se, mas o medo mantém-se." - Maquiavel

Em casas emprestadas apago a luz, pouso a agulha no disco e deito-me numa cama desconhecida. Mais uma noite sem sono nem descanso...

Os teus passos no corredor surgem como um eco distante. Sem palavras que me restem solto um suspiro. Quartos separados e vidas enclausuradas, desejos familiares e estranhas fachadas...

Chamo por ti num sonho tão vivido que dele não consigo despertar, tu ouves e falas-me em silêncio. Sinto-me ultrapassado sem te acompanhar e cansado de te desafiar.

Escondeste-te na sombra de razão que nos trouxe a este lugar? Esqueceste-te que partilhamos o mesmo luar? Ainda assim os teus passos assombram o corredor.

Aproxima-te, enquanto inspiro o teu respirar. Também eu temo por este regressar, pois não sou livre para te deixar. Fecho a porta, olho-a, fingindo que és tu e esqueço o torpor dos teus passos no corredor.

domingo, 3 de abril de 2011

Da Rússia com amor #2

Há na intimidade um limiar sagrado,
encantamento e paixão não podem transpor-
mesmo que no silêncio assustador se fundam
os lábios e o coração se rasgue de amor.

Onde a amizade nada pode nem os anos
da felicidade mais sublime e ardente,
onde a alma é livre, e se torna estranha
à vagarosa volúpia e seu langor lento.

Quem corre para o limiar é louco, e quem
o alcançar é ferido de aflição...
Agora compreendes por que já não bate
sob a tua mão em concha o meu coração.

Anna Akhmátova in. "só o sangue cheira a sangue" assirio & alvim

Da Rússia com amor

"Cada momento passado juntos
era uma celebração, uma Epifania,
nós os dois sozinhos no mundo.
Tu, tão audaz, mais leve que uma asa,
descias numa vertigem a escada
a dois e dois, arrastando-me
através de húmidos liláses, aos teu domínios
do outro lado, passando o espelho."

Arseny Tarkovsky in. " 8 ícones " assírio & alvim

segunda-feira, 14 de março de 2011

Amanhecer Sangrento em Red Rock Hills

Um som agudo e perfurante no altifalante irrompeu pelos ouvidos do comando da Polícia de Bastorp County, para logo em seguida se desfazer em ruído morto… a chuva caía em Red Rock Hills. Estavam presentes o comandante Joe Harding, os tenentes Watts e Bufford e a operadora de rádio Layla Moore. Todos sem excepção sabiam o que aquele blackout electrónico significava: o Detective William “Billy” Gaines estava comprometido…

Há meses que o Detective Gaines trabalhava infiltrado no gang de motoqueiros a operar no condado. Relativamente recentes na zona, estes arruaceiros de bar procuravam subir na vida “fiscalizando” a mercadoria dos camiões que saíam da Interstate 75. Eram chefiados por um sacana feio, porco e mau, de nome Don “The Ratchet” Miller. Sob a sua liderança, os “Steer Kings” como se chamavam, duplicaram o número de arruaças nocturnas e sextuplicaram a percentagem de assaltos violentos no Condado.

Nessa noite, o trabalho de Billy chegaria ao fim com a apreensão do núcleo duro do gang, que festejava em plena pandêga no "Red Rock Motel", depois se terem apoderado de um carregamento de oxicodona seguindo para distribuição farmacêutica em Dallas. Sequestrando o camionista nesse processo.

Billy havia informado a polícia da sua localização e aguardava apenas a confirmação de "The Ratchet", sobre a localização da droga. Com a dança macabra de álcool, violência e deboche, Billy pressiona o líder...

- P'ra quê a sede de informação puto?! 'tás a querer mais qua tua parte é?! - vociferava o sujeito grandalhão, já com a veia da testa a pulsar por entre o suor e sebo que lhe caíam do cabelo.

- Nada disso! Chibo é que na sou! ...dass 'tou a tentar ajudar... e se nos apanham aqui ca "cena" tamos lixados! Porra que tou nervoso chefe! - retoquiu Billy numa actuação digna de Óscar.

- Cab... deste maricas! queres tomar conta da cena vai buscá-la a estes gajos todos! - gritou, apontando para a horda de arruaceiros que povoavam o quarto 10 do Motel - bebe esta m... antes que ta parta na cabeça - e terminou enfiando no peito do Detective uma garrafa de Jack Daniels, com tanta força que lhe partiu o microfone.

Segundos depois, Joe Harding dava ordem ataque aos 5 carros patrulha que aguardavam sorrateiramente nas imediações do "Red Rock Motel". Para este polícia frio e calculista, Billy estava em apuros, talvez até morto e tudo indicava que havia vestígios da droga no Motel. Facilmente poderia ligar a mesma ao camião roubado e como bónus, Ratchet cumpria prisão por uma série de crimes, desde roubo a homicídio. Agora que estavam bêbados, drogados e relaxados seria a melhor hora para os apanhar.

- Dá a ordem Layla! Vamos para lá! Watts, Bufford... tragam os coletes. - comandou Harding em tom seguro e confiante.

Já no estacionamento do Motel, o Sargento Hawkes liderava a operação - É a polícia! Deponham armas e saiam em fila indiana com os braços na nuca! Caso não cumpram em 5 minutos, serão invadidos e forçados a tal!

- Agente Mullins! Preparem-se para atirar caso estes atrasados se armem em espertos. O primeiro que sequer mexer os braços ou começar a correr come chumbo! Entendido? - comunicou o Sargento ao subalterno.

Lá dentro, Ratchet ignorava por completo quem era Billy e encontrava-se numa fúria cega, arremessando cadeiras, mesas e até membros do gang que lhe aparecessem à frente - Rapazes, irmãos! Fod... esses filhos da p...! Cara... que volto p'ra choldra. Ficam aqui 6 de vocês enquanto eu, o Billy e o "Crazy Earl" lhes damos calor lá de cima, tudo o resto sai e baixa a cabeça lá fora!

Como indicado, 5 membros dos "Steer Kings", deixam o motel de mão na nuca, ajoelhando-se no estacionamento por ordem da polícia. A chuva caí fria e quase invisível na noite escura, agentes e criminosos só dão por ela quando, progressivamente, lhes encharca o escalpe.

Os polícias irrompem em direcção ao grupo, numa tentativa de os algemar, quando do interior do quarto saem disparos em rajada, abatendo o agente Mullins que seguia na frente, deixando todos os que o seguiam sujeitos à segunda vaga de disparos. Automaticamente e antecipando o fogo de cobertura da segunda unidade policial comandada pelo Sargento Hawkes, Ratchet e Crazy Earl abrem fogo. O Sargento que antes parecia implacável, permanecia de cócoras abrigado atrás do carro-patrulha, impotente perante a chacina dos seus homens.

O coração de Billy batia-lhe fora do peito... que seria dele se tentasse sequer fazer o seu dever? As análises toxicológicas mostrariam indícios de droga e álcool no sangue. Os seus superiores crucifica-lo iam por fugir ao tiroteio, assumindo que não o associavam ao gangue. Cerrou os dentes e agarrou Ratchet pelo pescoço, ao mesmo tempo que lhe enfiou 4 ou 5 balázios da sua 9 mm, à queima roupa pelas costas. No caos do tiroteio "Crazy Earl" mal percebeu o sucedido, caindo com um tiro certeiro na têmpora.

Ofegante, Billy gritou o cessar-fogo ao Sargento e logo este concentrou o esforço policial nas janelas e porta do quarto 10; sem hesitar, fuzilando com a automática os membros do gangue que permaneciam prostrados no chão a poucos metros de si.

Enquanto isto, Billy refugiou-se atrás de uma chaminé no terraço, sabendo que tinha sido ouvido e descoberto pelos pulhas lá em baixo. Só com muita sorte sairia vivo de Red Rock Hills... Seriam esses os seus últimos minutos de vida? Entregue no meio de sangue, whisky e droga? Estava longe dos dias da academia, da "sabedoria" dos livros e das noites de cadete em que se imaginava tomar parte numa grande operação como esta.

- Estão em minoria, entreguem-se agora e não precisam de haver mais mortes! - tentou o Sargento.

- Vai-te fo... porco! Despachamos o chibo antes de cá chegares, o vosso Billyzinho vai a abrir! - grunhiu um dos janados lá dentro.

No terraço sentiam-se os passos de homens feitos correndo escadas acima, ao que o jovem Detective se prepara para executar uma decisão radical: sem hipóteses de resistência naquela posição, lança-se em voo do telhado, aterrando secamente em cima das suas costas e dos vidros partidos, que polvilhavam a frente do motel. Numa fracção de segundos sentiu a dor de mil vidros rasgando-lhe o casaco de cabedal, a pele e a carne. Estava imóvel com a dor do impacto, mal sentindo o corpo quando as balas entraram, nos segundos que se seguiram ao seu voo temerário. Lá em cima os pulhas soltavam a sua última gargalhada.

Ao chegar o Comandante Harding e a sua unidade, o contingente policial efectuou com sucesso a entrada no quarto, chegando ao terraço, onde apreendeu os suspeitos. O Detective Gaines foi de imediato transportado para o hospital do Condado, falecendo na ambulância devido a perda de sangue. Tendo sido condecorado postumamente, na sequência do seu trabalho, que conduziu à recuperação do carregamento de oxicodona e salvamento do camionista. No roubo e sequestro planeado pelo gangue conhecido por "Steer Kings" o crime não venceu. Terminado o inquérito à operação e liderança do Comandante Joe Harding e do Sargento Thomas Hawkes, enquanto superiores no comando, foi o mesmo arquivado.

Nesse dia o sol nascente não conseguiu secar as poças de sangue e água, que a madrugada derramou em Red Rock Hills.


segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

O Otário


Bem, é meia-noite e existe um sujeito num prédio abandonado, algures a luz da sua gambiarra ilumina paredes descarnadas em tijolo e cimento. Um rádio toca lá no fundo de um quarto inacabado e tudo se ouve em chuva electrónica. Ele queria ir a todo o lado, mas não vai a lado nenhum.

Ninguém vem falar com ele e onde está os segredos ressoam pelas paredes mais nitidamente que o velho transístor. É da janela que vê. A ti. A mim. Esgrimindo mentiras em verdades disfarçadas de segredos. Nós somos tudo menos o aspecto limpo e bem vestido que aparentamos. Não interessa o que escondes debaixo do cabelo. Ele já viu. Tantas vezes.

Quem és tu? O que vi eu? Inventei eu uma mentira ao julgar-te diferente? Aquela que tantas vezes proferes sem querer saber se eu sei. Di-la tornando-a verdade?

Na insignificância ele vê-nos aos dois. Fingindo não nos importar. Mas será assim? Um bluff glorificado… Depois de tudo e do que devia saber, era de esperar que acabasse de outra maneira, mas quero pagar para ver... enquanto ele olha e te conhece pelo som dos passos, cada vez mais distantes, para não voltar.