quinta-feira, 31 de maio de 2012

Os Olhos do Sul: I - Rude Despertar


Cinco anos depois, esfacelado pela solidão e trucidado pela culpa, Kurt caminhava lentamente pelo corredor. O guarda Petterson seguia-o, não o escoltava, seguia-o. Em passo firme e pesado percorriam o corredor. Grades e gradeamentos multiplicavam-se em paralelo com a parede de betão, friamente novos para ele, que só tinha conhecido o pátio e a solitária no cárcere em Huntsville. Queria dizer-vos que vi uma figura ou um vulto para o começar a descrever, conferindo-lhe qualquer misticismo barato ao  jeito dos filmes, mas quando Kurt surge no raio de visão é impossível não distinguir os traços à partida: estatura média; cabelo negro, tal como se duas vassouras siamesas tivessem procriado com um espanador; olhos profundos e castanhos claros; e a barba irregular, mas grossa em redor do seu maxilar quadrado, fugindo para o queixo. A prisão teria-o mudado por certo, no entanto seria a liberdade que lhe tomaria a alma.

"Os heróis morreram no dia em que o homem inventou a pólvora" - afirmou solenemente Thomas Hawkes na penumbra da sala de visitas. Os seus olhos brilhavam quase tanto como as correntes de aço que algemavam Kurt, continuando - "sabes que alguns membros dos Steer Kings estão a ser sugeridos para uma amnistia? O Governador vai a eleições e alguns nomes apareceram em cima da mesa. Sabemos que o teu tempo aqui está a chegar ao fim e seria um infortúnio que fosses procurar os tipos perdoados pelo Estado e, à boa maneira do faroeste, encontrasses algum sarilho que deitasse estes anos todos por água abaixo". Kurt ouvia impassível. Os seus nervos, como espasmos, reagiam violentamente,  ao escutar na voz do Marshall, o mais leve tom de paternalismo falso. Hawkes não queria saber dele - tinha outros planos e esta conversa, evidentemente pensada, faria parte disso. Como o mais frio dos assassinos escudava a raiva por trás de um exterior calmo. Todos estes anos na solitária aperfeiçoaram essa sua faceta, moldando-a irreversivelmente à personalidade.

"Nunca apanharam o Comanche, sabias? Estes tipos vão levar-me até ele... Não é pelas mães que vão passar a semana no cabeleireiro para assistir ao discurso do Governador na libertação dos filhos. Esses filhos... e essas putas que os lançaram ao mundo são capazes de estragar tudo o que temos feito, para manter o pobre coitado que paga os impostos descansado à noite. Tu cumpriste a tua parte e fizeste por trazer descanso à sua alma... agora é a minha vez e lidarei com eles da maneira que mais me aprouver. Não te metas no caminho, percebes?" Proferiu, firme, enquanto deixava cair as palmas das mãos sobre a mesa. 

Onde qualquer um via impassibilidade, Hawkes irritava-se com a apatia de Kurt. Não o conseguia ler correctamente, no seu mundo era imprevisível, talvez tivesse até sucumbido à loucura depois de anos fechado em solitária. "Naquele julgamento todos sabíamos que eras inocente. Foi uma farsa teres dito que estavas com eles... A justiça não era para ser utilizada a teu mando e não foste tu que a mataste, caso estejas a fritar conclusões nessa cabeça louca." - depois de uma longa pausa continuou "O teu tempo está a chegar ao fim e o Tio Sam quer-te num programa de protecção... Eu dei-lhes uma ideia: Vais sair daqui de mansinho, a um mês de hoje, vais encontrar-te com um sujeito em Arab, Alabama. Este tipo, que dá pelo nome de Gutterson, vai ajudar-te. Vais direito ao Centro Cristão de Arab e perguntas pelo Gutterson. Percebeste? Ele tem tudo o que precisas e no dia que saíres os guardas devolvem-te a roupa com um bilhete de ida no bolso das calças. Se me estás a ouvir: a vida é tua, faz o que quiseres." Seco e directo, terminou e levantou-se da cadeira, saindo da sala como se nunca tivesse lá estado. Kurt permanecia imóvel no escuro. Um, dois, três, quatro segundos e o guarda Petterson entrou para o acompanhar, de novo, pelo corredor e até à cela.

Uma luz solitária, um pequeno foco, entrava por entre as grades e reflectia uma forma estranha na parede. Meia-noite. Podia ouvir-se numa voz carregada, profunda e inerentemente bruta: "O que achaste dele hoje, amor?" - "Normal?! Não quero ser isso, já não sei ser isso! Estamos bem assim...", engoliu e decidiu, resoluto "Se é isso que queres, vou para lá, mas é «normal» que vá haver sangue... ele não está a contar tudo!". Em breve, o mundo voltou a sossegar, mergulhando a cela no breu. Kurt estava irascível, não conseguia manter-se imóvel no colchão, tantos anos depois a perspectiva de voltar a ver o exterior assustava-o. Não, não era isso. Tremia ao pensar num espelho, algures num motel, na casa de alguém ou numa estação de serviço onde contemplaria o seu reflexo a escassos metros de outro ser humano e teria de deixar se olhar como a um animal enjaulado. Na sua ideia jamais seria livre.

Os trinta dias seguintes passaram como os anteriores e os outros antes desses. As manhãs eram passadas a fazer exercício, primeiro na cela, depois no pátio. A aquele velho edifício era o local mais a leste do paraíso ao cimo da terra, tão permeável ao calor que era normal morrer-se por desidratação. Na sombra, o efeito de estufa era assustador ao início, mas chegar ao pátio ao meio-dia e ser atingido pelo sol ardente... provoca alucinações. Sarah apareceu-lhe nesse dia, ao cimo da barra de halteres "Estou tão orgulhosa de ti. Estes anos todos acabariam com qualquer um, mas tu superaste. Estás forte... olha para ti. Não tenhas medo de deixar isto, este desterro, este inferno. Há uma vida à tua espera, independentemente das promessas que fizemos, nada se esgota no sofrimento. Prova que és capaz de fazer melhor, parte a pedra e volta a ser carne." - Os braços doíam-lhe de tanto tempo suspensos no ar e o suor descia-lhe pela testa queimando-lhe os olhos. No entanto, segurava o haltere como se fosse parte do corpo. As paredes de tijoleira vermelha só lhe podiam tirar o ar, porque a tenacidade haveria de as transpor.

quinta-feira, 3 de maio de 2012

Ponto de Fuga: Epílogo

Dela sobressaiam os olhos, agora sem vida, vagarosamente cobertos pela bruma gélida que se abateu sobre a noite. Minutos como horas passaram, até sentir os músculos entorpecer, a respiração queimar-lhe no peito e a vida deixando-os lentamente. Não podia existir ali, ao lado do cadáver, sem se tornar um fantasma dele próprio e de tudo o que tinha vivido ao lado de Sarah: a sua cicatriz estava-lhe profundamente marcada na memória. Eram o universo um do outro, as possibilidades que por mero acaso temporal ainda não se tinham concretizado, os tempos presente, passado e futuro convergiram para este espaço e concederam-lhes a imortalidade.

Quando o sol se levantou e névoa deu lugar ao orvalho, a sua alma estava tão morta como o corpo dela, perscrutando o mundo pelos olhos incrustados nas cavidades negras de uma caveira pálida. Pelas veias corria-lhe um ténue fio de sangue e o peito empedernido pesava demasiado para se erguer, para voltar a ver, a sentir, a cumprir as regras básicas da existência a que todos os mortais estão adstritos à nascença. Um funeral não seria apropriado, não haveria palavras, rituais ou gestos de paz que pudessem apaziguar as suas almas. A violência da vida ecoa na sua morte, ensurdece o seu sentido e assume essa razão.

Há uma luz a guiar-nos durante o caminho que trilhamos, ela pode revestir várias tonalidades, cores e até formas, mas nunca deixa de nos acompanhar. No rescaldo destes acontecimentos, o seu farol mudou muito, no entanto só havia um caminho. Iria percorre-lo estoicamente, na solidão, na pobreza e no vácuo... e arrastaria outros para lá. Reclamaria as suas vidas para instar medo na espinha dos fracos de mente, impotentes para ver a luz. Ela estaria ao seu lado, até as estrelas se alinharem, como sempre esteve e nunca poderia deixar de estar, numa lei não escrita sobre a qual eram, são e serão - cabendo-lhes o céu que libertaria a tempestade que se seguiu.

O ponto de fuga é aquele lugar para onde convergem as linhas no horizonte, onde o profundo se perde e o todo se encontra. Somos todos pontos e linhas, que se apagam e pintam com a maior das facilidades. A fuga, o escape, demonstram o nosso significado: de onde vimos e para onde vamos. Em seis fases, Kurt e Sarah, descobriram o seu: primeiro o DESPERTAR, onde passam de um apelo inconsciente de escape para a necessidade e materialização do mesmo; em segundo o VEICULO, pois toda o movimento precisa de um corpo e de uma alma e o 442 confunde-se e impõe-se nos personagens, qual extensão do seu corpo e alma, oferecendo-lhes profundidade; seguidamente a PERSPECTIVA, em que são forçados a definir os seus limites e a sua distância, assumindo o desconhecido e para Kurt e Sarah o limite foi a sua relação, os dois coexistem no mesmo trajecto; para lá de meio o percurso torna-se emocionante e atinge o PICO, mostrando toda a sua beleza para os iludir; a quinta etapa a CONFUSÃO, levando os viajantes por atalhos, deixados à deriva afastados do real propósito e da sua força motriz; até à TRANSCENDÊNCIA, o final aparentemente amargo, onde passado o ponto sem retorno, os confronta com as suas escolhas, encerrando a verdade que tanto esperavam, para continuar a viver sem precisar de fugir.

Na realidade, o mais pequeno detalhe pode afectar-nos. Sem dúvida, no entanto é essa a pessoa que queremos ser? Não para o Kurt. Ele quis tomar as rédeas do seu próprio destino: escolheu a rapariga e conduziu o carro. Não fez a viagem perfeita, mas mais ninguém a fez por ele. Esta é a sua história e todos os outros são detalhes, pedras ou almofadas no caminho. Encontrou particular conforto neste pensamento quando, na prisão, rodeado por criminosos, percebeu que podia fazer valer esse tempo. Preparar-se para concretizar o que aprendeu na viagem com Sarah, tomando controlo, deitando as peças deste xadrez abaixo.


Kurt Stone voltará em: OS OLHOS DO SUL

Ponto de Fuga: ...Onde A Estrada Acaba (VI)


Recuperava ainda os sentidos lentamente e antes de sequer abrir os olhos, amargava o sangue ainda fresco nas gengivas. A porta da frente escancarada deixou entrar o bafo quente que me fez levantar de uma vez. Derreado e ferido no orgulho, receava agora qualquer estalo nas costelas, pelo menos aquele que me impedisse de chegar ao telefone. Teria de haver um telefonema. Não. Pregada à ombreira da porta com um punhal, num papel com o número, a mensagem estava entregue. Estes tipos eram negociantes à séria, para seguir à risca. -"Agora já não és tão esperto! Que queres? Queres a tua mulher de volta?" gritava do outro lado do telefone o Comanche - "Que manobra foi essa no Diner?! O teu trabalho é entregar o pacote! Queres entrar na folha de pagamentos, é isso?". Só me restava implorar e suplicar pela segurança de S., enquanto ouvia as suas provocações. Sim, a este ponto rezava para nunca ter acordado dos efeitos da droga e tudo isto não passar de um sonho febril.

Abri a caixa, finalmente. Continha um cachimbo, mas procurei dentro do embrulho e lá estavam os papeis, manifestos de carga emitidos pelo Estado do Texas. A minha tarefa era entregá-los ao Armazém na Alameda Avenue, aqui em El Paso. Deveria depois receber novos documentos e entrega-los em Red Rock, no Red Rock Motel, onde - "É ao fim da Main Street e CASO CUMPRAS TUDO À RISCA, até à alvorada de amanhã a encontras viva". Depois de tudo o que tomei por garantido, restava a estrada, essa terra prometida agora nossa salvação.

Pisei o acelerador e larguei a embraiagem, naquela fracção de segundo entre movimentos o 442 faz o mundo tremer até desaparecer numa nuvem de pó. A primeira tarefa afigura-se fácil e rápida, no armazém seguem, como formigas no carreiro, sujeitos de tez escura carregando caixotes dos camiões para a zona de descarga. "Boa tarde forasteiro. Faça favor de dizer." inquiriu o indivíduo à minha frente. Suiças e cabelo grisalho escapando-se por baixo do boné, baixa estatura e aparência afável ilibavam Harry de qualquer convivência com actividades criminosas. - "Fiquei de entregar pessoalmente estes manifestos de carga, onde posso encontrar o responsável?" mal acabei a pergunta já a resposta saia cuspida - "Vamos lá para dentro miúdo. O índio não gosta destes negócios debaixo de sol. Queima, se é que me entendes".

Aqui começam as complicações, aquelas tão inesperadas e indesejáveis quando a vida quem mais amamos está em causa: Os documentos estavam entregues, mas devido ao seu atraso, teria de entregar a cópia forjada ao camionista que me aguardava numa estação de serviço em West Odessa. Quando está tanto em jogo é complicado racionalizar para procurar a falha no plano e quando não consegues encontrar a falha no plano, simplesmente, falharás. Por muito que conduzisse como fugido do inferno, cortando curvas e batendo no vermelho mais vezes que menos, estava demasiado exposto.

O Shooter's Gas and Grill em West Odessa era uma paragem de camionistas no meio do deserto e tirando umas dunas a bons metros, bem como dois ou três poços de petróleo no horizonte, não estava rodeada por nada. Ora, não seria aqui que nos iam apanhar, no céu aberto e ainda à luz do dia. Seria já na noite escura quando investia a cerca de 200 kms por hora em direcção a Bastorp. Cansado e com mais olhos no relógio que na estrada, pensando nela, sofrendo por ela na angústia de não saber, deixado com a ideia de ter sido engolido por uma trama maior que nós os dois. Ao fundo piscam as luzes azuis e vermelhas: estrada cortada, fim da linha e todas as metáforas que não me passaram pela cabeça por ter encontrado naquele borrão de cor lá ao fundo a figura do desespero...

Pé a fundo no travão e o carro afunda e contorce-se no asfalto, em câmara lenta, a suspensão desce junto às rodas, inclinada de sobremaneira para a direita e centrifugamente guiado pela traseira encontro-me paralelo à barreira policial... largo o travão e piso o acelerador novamente para ganhar aderência e enfiar a toda a velocidade pela estrada de terra batida que desviava do caminho. A poeirada levanta em nuvem, embatendo nos faróis dos meus perseguidores. Forma um efeito de cortina, encadeando-os para os cegar em seguida e logo que a transpõem mergulham no breu. Despistei-os, mas estava demasiado perto de Red Rock para arriscar o regresso à estrada principal. Circulando erraticamente pelos trilhos do gado e caminhos secundários adjacentes às quintas da vizinhança, seguro-me ao volante, ignoro os solavancos e procuro a cada curva o Red Rock Motel.

O pórtico lia em letras de neon fundidas "Motel", só isso. Rachas no pavimento e as marcações do estacionamento secas e desvanecidas não logravam distrair o viajante do ar de abandono do edifício destruído. Em redor não se ouve vivalma e corridos alguns minutos decido aventurar-me. A luz do único poste lá fora passa em feixes de pó pelos buracos na parede, buracos de bala aparentemente. Passo a passo percorro a sala até tropeçar e sentir a picada na cabeça, ou talvez tenha acontecido ao contrário. Derrubado, volto a mim apoiado nos destroços de uma mesa de café e levanto a cabeça para ser surpreendido por uma sombra de uma pessoa, estática na ombreira da porta.

- "Quantas estradas tem um homem de percorrer... até admitir que está perdido?" proferiu a figura cadavérica do Sargento Thomas Hawkes e continuou, enquanto eu assistia atónito e em choque - "Sabemos quem és tu Kurt Stone, mas quem és mesmo tu? Um agarrado a querer subir na vida? Trabalhas para o J.? ...sejas lá quem fores tenho a agradecer-te por esta operação. Foste o sabotador... depois do que se passou aqui da última vez o Capitão Harding não queria arriscar a vida de mais um infiltrado. Sim, o mesmo que deixaste apeado naquele Diner em Benson: Elrod. Há semanas que sabíamos do vosso negócio da Califórnia, só nos faltava poder de fogo. Os manifestos que andaste a entregar foram a chave para voltar a por estes tipos na choça." disse enquanto adoptava uma postura altiva e arrogante. Sabia que me tinha usado e da injustiça que pendia sobre mim e, principalmente sobre S. - "Onde está a rapariga? ela não tem nada a ver com isto! Deixa-me vê-la!" insisti, agarrando-o pelo braço para ser derrubado com um murro no estômago em seguida. - "Não me toques!" - mais calmo, ajeitando a manga da camisa, confessou: - "Lamento ter de ser eu a dizer-te isto, mas ela já estava morta quando chegámos, Eddie "O Comanche" executou-a quando confirmou que tinhas feito o trabalho...".

Nesse momento entraram dois agentes e seguraram-me pelos braços, enquanto Hawkes me olhava impassível, a sua cabeça calva e as linhas do rosto como rastos de navalhas, movendo-se e dobrando-se. Ele falava, conseguia ver os lábios descendo e subindo, numa estranha dança hipnótica. No entanto, não o ouvia. Levantaram-me do chão como se pegassem numa mala de viagem, arrastaram-me até à rua e diante de uma maca, uma qualquer maca como se vê nos filmes, alguém destapou a coberta e lá estava, inerte, sumida e sem expressão, Sarah Anne Ralston: o princípio e o fim das minhas viagens.

Ponto de Fuga: Datura (V)


 
De Las Cruces a El Paso não demorámos uma hora. Até que enfim, o Texas, aquele baluarte histórico do sudoeste americano. A fiesta nunca pára deste lado do Rio Grande e S. queria ficar uns dias para conhecer a cidade e absorver aquela cultura tex-mex. Afinal de que serve correr o mundo se não paramos um pouco para o sentir avançar também. Como uma força imparável que percorre o asfalto, deambulando sem rumo aparente para os que não percebem porquê, os que vivem no medo do seu isolamento ou para os que, simplesmente, não acreditam que haja algo no fim desta jornada.

Nos arredores da cidade por entre cactos, nuvens de poeira e pedregulhos, avistamos guarida à lei da estrada. O Beverly Crest Motor Inn é um daqueles locais hitchcockianos, prende-nos desde que o avistamos na estrada, fixando-nos no seu mundo próprio: Três pilares de aço amarelos seguram o seu logotipo de neon em forma triangular; ao lado o edifício da recepção em tijoleira do qual crescem cinco vigas para suportar o avançado que dá guarida ao drive-through; em seu redor ficam os quartos, numa correnteza de casas amarelas dispostas em U; e logo atrás, majestosas e imponentes, as Franklin Mountains. - "Piscina, Televisão, Rádio e Telefone... O nosso pedacinho de céu!" exclamou S., ironicamente, ao ler o sinal.

Parámos o carro diante da porta 19 e entrámos. O quarto teria decoração original dos anos sessenta, hoje substituída e renovada, mas manteve o espírito acolhedor. Uma casa-de-banho, uma televisão e uma cama: - "Que surpresa... Não se parece nada com a brochura". Ao olhar para o carro, sorrimos um para o outro - não havia bagagem a carregar - faltava apenas a "encomenda" de J., esquecida na bagageira e irradiando curiosidade. Cúmplices, deixámo-la ficar no cofre, agora era altura de voltar ao volante e partir para as ruas de El Paso.

No centro da cidade, por onde Wyatt Earp, Billy "The Kid" ou Pancho Villa caminharam, passeamos pela famosa South El Paso Street. Ao fundo da rua, existe a ponte Santa Fé que liga a Ciudad Juarez, México. Ao longo do passeio, os prédios antigos partilham a herança cultural latina. Por toda a rua persiste a ideia de nos encontrarmos num colorido mercado ao ar livre. É possível olhar para dentro das lojas e ouvir o dono gritar "Pásale!". Um misto de sabores e aromas paira no ar e tanto cowboys como mexicanos frequentam os passeios lado a lado com homens de negócios e turistas. Por muito que o cenário intrigasse, impunha-se contra a minha natureza: não sou turista, falta-me paciência e inutilidade. Como qualquer homem simples desfaço-me do frete e vou à procura do bar mais próximo. Tragam-me um balcão de madeira, matrículas pregadas à parede e a cabeça de búfalo mais hedionda de todo o Texas que abro lá conta. Ainda assim parece ser impossível de encontrar tal taberna em El Paso: é tudo demasiado ordeiro e para qualquer lado que me vire, eriçam-se os pelos das costas como se andasse a ser seguido.

A noite vai caindo nas montanhas e voltamos ao Beverly Crest Motor Inn, cada vez mais longe da folia da cidade, os faróis depressa se tornam uma candeia na escuridão e o roncar do 442 o único barulho de fundo em quilómetros. Empurro a cassete de novo no leitor e suavemente ouve-se o primeiro solo de "I Can't Tell You Why" dos The Eagles. S. encosta-se a mim, trazendo uma sensação de paz e de que tudo está bem com o mundo mais uma vez. Em breve surge à vista o nosso oasis luminoso e, depois de carregados os sacos com vestidos, bugigangas e até um sombrero, fechamos a porta do quarto.

- "Querido, quero experimentar uma coisa contigo, só tens de me prometer que não te vais chatear, ok?" confidenciou S.
- "Nunca me pediste autorização para nada, estamos a falar do quê mesmo? Ah e já sabes que me vou chatear. Vais ter de me convencer com muito jeitinho..." enquanto me debruçava para a beijar no pescoço, para logo ser afastado.
- "Pára sossegado e ouve lá. Lembras-te quando passámos naquela loja onde até comprei aquele vestido verde? O irmão ou primo - não sei - da dona vendeu-me estas raízes... sabes o que é?"
- "Não faço ideia, mas não deve ser para fazer chá, não?" disse, impaciente.
- "É erva do diabo. Antes que digas qualquer coisa...";
- "Erva do Diabo... Que queres que diga? Que não é nem um bocadinho perigoso demais? Que não morrem pessoas à conta da brincadeira?"
- "Ouve! Tive uma colega de quarto na faculdade que estava a tirar farmácia e fez um trabalho sobre esta planta. Experimentou e tudo... e ensinou-me a preparar uma dose.";
- "Mesmo assim S., para quê??"
- "É especial para mim... sabes que acreditavam que a erva do diabo tinha propriedades exóticas. Como que revela o teu destino. Queria experimentar com alguém que fosse mesmo importante para mim...".

A conversa durou mais algum tempo, ainda que tivesse cedido antes. Não conhecia os efeitos desta droga, fui deveras incauto. Sobre S., não consigo sequer imaginar que demónio a terá possuído para sugerir uma coisa destas, quanto mais levá-la avante. Eventualmente, acabámos por beber o chá com uma dose mínima de raiz de Datura Stramonium, segurando-me pela mão e acariciando-me durante todo o processo. A minha relação com as drogas é pacífica, excepto com aquelas que mordem e deixam marca. S. encarava esta experiência como uma viagem de auto-descoberta, uma demanda pelas respostas do nosso íntimo, enfim, conversa de hippie... Não posso, no entanto dizer que não teve os seus momentos agradáveis. Enquanto esperávamos pelo começo da nossa viagem mística, deitámos-nos sobre a cama e... devo dizer que nunca tinha sentido da parte de alguém uma entrega física e emocional tão intensa.

Não sei o que aconteceu depois, falhei a curva, abri os olhos, pestanejando e coçando-os, mas por mais que fizesse não conseguia voltar ao quarto. Estava num quarto diferente, onde o papel de parede era verde tropa, os quadros representavam cenas clássicas de caça e, talvez por estar ainda confuso, tudo o resto parecia ser de outro tempo. De outra era. Levantei-me, combalido, da cama de dossel e fui assaltado por uma sensação de medo extremo, não conseguia ver dois palmos em frente do nariz. Estava de dia, pois via luz a entrar pelas janelas, no entanto esbarrava contra uma barreira de escuridão que emanava de mim. Andava, desorientado, pelos corredores, chocando contra armários e paredes até cair estatelado no chão.

Arrastei-me até ao fundo do corredor, apoiado na ombreira da porta, devolvendo-me à verticalidade. Este quarto era, por sua vez, diferente dos outros. Parecia o Berverly Crest Inn, mas situava-se na mesma casa onde eu estava. A sua decoração era de meados do século passado, onde S. se quedava diante da janela, imóvel, no beiral. Clamava por ela sem obter reacção. Queria ser a resposta, ardia de ansiedade pelo fim desta viagem: - "Podes dizer e achar que não sei o que vai ser acontecer daqui para a frente. Se ficaremos juntos, se conheceremos outras pessoas, até se nos vamos esquecer do que fomos um para o outro. Eu sei quem sou. Sou o tipo para ti, o tempo passará e todos os dias serei essa pessoa. Tu vais saber-lo. Podia pedir-te agora, que tens dúvidas, para te lembrares disto, mas tu sabes que não tenho falta de memória. Não há alturas certas para sentir... quando perceberes o que te digo hoje será o primeiro dia da minha vida." confessei-lhe apaixonadamente".

- "Diz-me quem sou eu. Quem é o Kurt?" a resposta veio numa explosão de luz. Ofuscado, tomei o golpe por baixo do ombro e em seguida outro pelo peito. Ouvia uma voz rouca, estranha, gritando-me para me levantar: "horas de acordar, pinga-amor!" e a voz continuou, pontapeando-me pelo chão.
Encolhido no canto do quarto, atrevi-me a abrir os olhos: um sujeito esguio, de barba de várias semanas e com um aspecto deslavado, mirava-me, fazendo um esforço para não se rir mantendo a postura, intimidativo. Usava um colete de cabedal negro, nas costas figurava uma caveira de boi com uma coroa pendurada pelo corno, lendo-se acima Steer Kings. S. não se avistava em lado algum e eu estava nu, fazendo de saco de pancada para um motard. As minhas piores expectativas confirmaram-se: - "Temos a tua chavala! Onde é que está o caixote que apanharam daquele fuinha do J.? ...não precisas que te faça um desenho, pois não?".