quinta-feira, 3 de maio de 2012

Ponto de Fuga: Epílogo

Dela sobressaiam os olhos, agora sem vida, vagarosamente cobertos pela bruma gélida que se abateu sobre a noite. Minutos como horas passaram, até sentir os músculos entorpecer, a respiração queimar-lhe no peito e a vida deixando-os lentamente. Não podia existir ali, ao lado do cadáver, sem se tornar um fantasma dele próprio e de tudo o que tinha vivido ao lado de Sarah: a sua cicatriz estava-lhe profundamente marcada na memória. Eram o universo um do outro, as possibilidades que por mero acaso temporal ainda não se tinham concretizado, os tempos presente, passado e futuro convergiram para este espaço e concederam-lhes a imortalidade.

Quando o sol se levantou e névoa deu lugar ao orvalho, a sua alma estava tão morta como o corpo dela, perscrutando o mundo pelos olhos incrustados nas cavidades negras de uma caveira pálida. Pelas veias corria-lhe um ténue fio de sangue e o peito empedernido pesava demasiado para se erguer, para voltar a ver, a sentir, a cumprir as regras básicas da existência a que todos os mortais estão adstritos à nascença. Um funeral não seria apropriado, não haveria palavras, rituais ou gestos de paz que pudessem apaziguar as suas almas. A violência da vida ecoa na sua morte, ensurdece o seu sentido e assume essa razão.

Há uma luz a guiar-nos durante o caminho que trilhamos, ela pode revestir várias tonalidades, cores e até formas, mas nunca deixa de nos acompanhar. No rescaldo destes acontecimentos, o seu farol mudou muito, no entanto só havia um caminho. Iria percorre-lo estoicamente, na solidão, na pobreza e no vácuo... e arrastaria outros para lá. Reclamaria as suas vidas para instar medo na espinha dos fracos de mente, impotentes para ver a luz. Ela estaria ao seu lado, até as estrelas se alinharem, como sempre esteve e nunca poderia deixar de estar, numa lei não escrita sobre a qual eram, são e serão - cabendo-lhes o céu que libertaria a tempestade que se seguiu.

O ponto de fuga é aquele lugar para onde convergem as linhas no horizonte, onde o profundo se perde e o todo se encontra. Somos todos pontos e linhas, que se apagam e pintam com a maior das facilidades. A fuga, o escape, demonstram o nosso significado: de onde vimos e para onde vamos. Em seis fases, Kurt e Sarah, descobriram o seu: primeiro o DESPERTAR, onde passam de um apelo inconsciente de escape para a necessidade e materialização do mesmo; em segundo o VEICULO, pois toda o movimento precisa de um corpo e de uma alma e o 442 confunde-se e impõe-se nos personagens, qual extensão do seu corpo e alma, oferecendo-lhes profundidade; seguidamente a PERSPECTIVA, em que são forçados a definir os seus limites e a sua distância, assumindo o desconhecido e para Kurt e Sarah o limite foi a sua relação, os dois coexistem no mesmo trajecto; para lá de meio o percurso torna-se emocionante e atinge o PICO, mostrando toda a sua beleza para os iludir; a quinta etapa a CONFUSÃO, levando os viajantes por atalhos, deixados à deriva afastados do real propósito e da sua força motriz; até à TRANSCENDÊNCIA, o final aparentemente amargo, onde passado o ponto sem retorno, os confronta com as suas escolhas, encerrando a verdade que tanto esperavam, para continuar a viver sem precisar de fugir.

Na realidade, o mais pequeno detalhe pode afectar-nos. Sem dúvida, no entanto é essa a pessoa que queremos ser? Não para o Kurt. Ele quis tomar as rédeas do seu próprio destino: escolheu a rapariga e conduziu o carro. Não fez a viagem perfeita, mas mais ninguém a fez por ele. Esta é a sua história e todos os outros são detalhes, pedras ou almofadas no caminho. Encontrou particular conforto neste pensamento quando, na prisão, rodeado por criminosos, percebeu que podia fazer valer esse tempo. Preparar-se para concretizar o que aprendeu na viagem com Sarah, tomando controlo, deitando as peças deste xadrez abaixo.


Kurt Stone voltará em: OS OLHOS DO SUL

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