quinta-feira, 3 de maio de 2012

Ponto de Fuga: Datura (V)


 
De Las Cruces a El Paso não demorámos uma hora. Até que enfim, o Texas, aquele baluarte histórico do sudoeste americano. A fiesta nunca pára deste lado do Rio Grande e S. queria ficar uns dias para conhecer a cidade e absorver aquela cultura tex-mex. Afinal de que serve correr o mundo se não paramos um pouco para o sentir avançar também. Como uma força imparável que percorre o asfalto, deambulando sem rumo aparente para os que não percebem porquê, os que vivem no medo do seu isolamento ou para os que, simplesmente, não acreditam que haja algo no fim desta jornada.

Nos arredores da cidade por entre cactos, nuvens de poeira e pedregulhos, avistamos guarida à lei da estrada. O Beverly Crest Motor Inn é um daqueles locais hitchcockianos, prende-nos desde que o avistamos na estrada, fixando-nos no seu mundo próprio: Três pilares de aço amarelos seguram o seu logotipo de neon em forma triangular; ao lado o edifício da recepção em tijoleira do qual crescem cinco vigas para suportar o avançado que dá guarida ao drive-through; em seu redor ficam os quartos, numa correnteza de casas amarelas dispostas em U; e logo atrás, majestosas e imponentes, as Franklin Mountains. - "Piscina, Televisão, Rádio e Telefone... O nosso pedacinho de céu!" exclamou S., ironicamente, ao ler o sinal.

Parámos o carro diante da porta 19 e entrámos. O quarto teria decoração original dos anos sessenta, hoje substituída e renovada, mas manteve o espírito acolhedor. Uma casa-de-banho, uma televisão e uma cama: - "Que surpresa... Não se parece nada com a brochura". Ao olhar para o carro, sorrimos um para o outro - não havia bagagem a carregar - faltava apenas a "encomenda" de J., esquecida na bagageira e irradiando curiosidade. Cúmplices, deixámo-la ficar no cofre, agora era altura de voltar ao volante e partir para as ruas de El Paso.

No centro da cidade, por onde Wyatt Earp, Billy "The Kid" ou Pancho Villa caminharam, passeamos pela famosa South El Paso Street. Ao fundo da rua, existe a ponte Santa Fé que liga a Ciudad Juarez, México. Ao longo do passeio, os prédios antigos partilham a herança cultural latina. Por toda a rua persiste a ideia de nos encontrarmos num colorido mercado ao ar livre. É possível olhar para dentro das lojas e ouvir o dono gritar "Pásale!". Um misto de sabores e aromas paira no ar e tanto cowboys como mexicanos frequentam os passeios lado a lado com homens de negócios e turistas. Por muito que o cenário intrigasse, impunha-se contra a minha natureza: não sou turista, falta-me paciência e inutilidade. Como qualquer homem simples desfaço-me do frete e vou à procura do bar mais próximo. Tragam-me um balcão de madeira, matrículas pregadas à parede e a cabeça de búfalo mais hedionda de todo o Texas que abro lá conta. Ainda assim parece ser impossível de encontrar tal taberna em El Paso: é tudo demasiado ordeiro e para qualquer lado que me vire, eriçam-se os pelos das costas como se andasse a ser seguido.

A noite vai caindo nas montanhas e voltamos ao Beverly Crest Motor Inn, cada vez mais longe da folia da cidade, os faróis depressa se tornam uma candeia na escuridão e o roncar do 442 o único barulho de fundo em quilómetros. Empurro a cassete de novo no leitor e suavemente ouve-se o primeiro solo de "I Can't Tell You Why" dos The Eagles. S. encosta-se a mim, trazendo uma sensação de paz e de que tudo está bem com o mundo mais uma vez. Em breve surge à vista o nosso oasis luminoso e, depois de carregados os sacos com vestidos, bugigangas e até um sombrero, fechamos a porta do quarto.

- "Querido, quero experimentar uma coisa contigo, só tens de me prometer que não te vais chatear, ok?" confidenciou S.
- "Nunca me pediste autorização para nada, estamos a falar do quê mesmo? Ah e já sabes que me vou chatear. Vais ter de me convencer com muito jeitinho..." enquanto me debruçava para a beijar no pescoço, para logo ser afastado.
- "Pára sossegado e ouve lá. Lembras-te quando passámos naquela loja onde até comprei aquele vestido verde? O irmão ou primo - não sei - da dona vendeu-me estas raízes... sabes o que é?"
- "Não faço ideia, mas não deve ser para fazer chá, não?" disse, impaciente.
- "É erva do diabo. Antes que digas qualquer coisa...";
- "Erva do Diabo... Que queres que diga? Que não é nem um bocadinho perigoso demais? Que não morrem pessoas à conta da brincadeira?"
- "Ouve! Tive uma colega de quarto na faculdade que estava a tirar farmácia e fez um trabalho sobre esta planta. Experimentou e tudo... e ensinou-me a preparar uma dose.";
- "Mesmo assim S., para quê??"
- "É especial para mim... sabes que acreditavam que a erva do diabo tinha propriedades exóticas. Como que revela o teu destino. Queria experimentar com alguém que fosse mesmo importante para mim...".

A conversa durou mais algum tempo, ainda que tivesse cedido antes. Não conhecia os efeitos desta droga, fui deveras incauto. Sobre S., não consigo sequer imaginar que demónio a terá possuído para sugerir uma coisa destas, quanto mais levá-la avante. Eventualmente, acabámos por beber o chá com uma dose mínima de raiz de Datura Stramonium, segurando-me pela mão e acariciando-me durante todo o processo. A minha relação com as drogas é pacífica, excepto com aquelas que mordem e deixam marca. S. encarava esta experiência como uma viagem de auto-descoberta, uma demanda pelas respostas do nosso íntimo, enfim, conversa de hippie... Não posso, no entanto dizer que não teve os seus momentos agradáveis. Enquanto esperávamos pelo começo da nossa viagem mística, deitámos-nos sobre a cama e... devo dizer que nunca tinha sentido da parte de alguém uma entrega física e emocional tão intensa.

Não sei o que aconteceu depois, falhei a curva, abri os olhos, pestanejando e coçando-os, mas por mais que fizesse não conseguia voltar ao quarto. Estava num quarto diferente, onde o papel de parede era verde tropa, os quadros representavam cenas clássicas de caça e, talvez por estar ainda confuso, tudo o resto parecia ser de outro tempo. De outra era. Levantei-me, combalido, da cama de dossel e fui assaltado por uma sensação de medo extremo, não conseguia ver dois palmos em frente do nariz. Estava de dia, pois via luz a entrar pelas janelas, no entanto esbarrava contra uma barreira de escuridão que emanava de mim. Andava, desorientado, pelos corredores, chocando contra armários e paredes até cair estatelado no chão.

Arrastei-me até ao fundo do corredor, apoiado na ombreira da porta, devolvendo-me à verticalidade. Este quarto era, por sua vez, diferente dos outros. Parecia o Berverly Crest Inn, mas situava-se na mesma casa onde eu estava. A sua decoração era de meados do século passado, onde S. se quedava diante da janela, imóvel, no beiral. Clamava por ela sem obter reacção. Queria ser a resposta, ardia de ansiedade pelo fim desta viagem: - "Podes dizer e achar que não sei o que vai ser acontecer daqui para a frente. Se ficaremos juntos, se conheceremos outras pessoas, até se nos vamos esquecer do que fomos um para o outro. Eu sei quem sou. Sou o tipo para ti, o tempo passará e todos os dias serei essa pessoa. Tu vais saber-lo. Podia pedir-te agora, que tens dúvidas, para te lembrares disto, mas tu sabes que não tenho falta de memória. Não há alturas certas para sentir... quando perceberes o que te digo hoje será o primeiro dia da minha vida." confessei-lhe apaixonadamente".

- "Diz-me quem sou eu. Quem é o Kurt?" a resposta veio numa explosão de luz. Ofuscado, tomei o golpe por baixo do ombro e em seguida outro pelo peito. Ouvia uma voz rouca, estranha, gritando-me para me levantar: "horas de acordar, pinga-amor!" e a voz continuou, pontapeando-me pelo chão.
Encolhido no canto do quarto, atrevi-me a abrir os olhos: um sujeito esguio, de barba de várias semanas e com um aspecto deslavado, mirava-me, fazendo um esforço para não se rir mantendo a postura, intimidativo. Usava um colete de cabedal negro, nas costas figurava uma caveira de boi com uma coroa pendurada pelo corno, lendo-se acima Steer Kings. S. não se avistava em lado algum e eu estava nu, fazendo de saco de pancada para um motard. As minhas piores expectativas confirmaram-se: - "Temos a tua chavala! Onde é que está o caixote que apanharam daquele fuinha do J.? ...não precisas que te faça um desenho, pois não?".

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