sábado, 15 de setembro de 2012

Bebida, mulheres e cantada

O tilintar vítreo dos cubos no copo anuncia mais uma rodada e ainda não passava um quarto das dez. Enquanto isso, tomam-se uivos primitivos e outros silvos em tons de negro e azul florescente no "Long Tall Sally's".

- "Hey, Lester. Obrigado pl'aquilo d'há bocado e tal, mas quando pensas pagar a conta?" proferiu o barman. Pouco tempo antes, os lavabos masculinos haviam sido remodelados com as feições de um efeminado. A ajuda dos fieis foi apreciada e devidamente recompensada.

Petey era um sujeito cuidado, conhecido na zona como a cara atrás do balcão. Não havia outro bar e tão cedo não haveria outra cara - "viver e morrer em Reading..." era o lema de Pete quando as coisas corriam mal. Tratava bem os regulares e encantava os visitantes com as luzes baixas e as cores frias da cidade. Ainda assim, quando obrigado, sabia atacar do seu canto. Ou achava-se sabendo.

Lester Pepper estava absorto nas suas considerações, agitando subitamente os braços em movimentos orquestrais, desviando por completo a atenção da sua estranha figura: a sua estatura impedia-o de ser visto como "magro", era esguio; a sua face revelava alguma idade, sem que o cabelo negro desse sinais de brancura, mesmo bem puxado para trás; e usava óculos, escuros, de ciclista, à noite e num bar. De facto, um piloto de avião dos anos 20 estaria mais bem enquadrado naquele sofá de canto.

- "Então Lester como vai ser?" inquiriu Petey, talvez com um pouquinho de zelo a mais do que a situação exigia, recordando a proverbial aversão ao pagamento de dívidas que o álcool causa. Lester esticou a mão esquerda e estalou os dedos ao serviçal - "Estais a chamar-me irlandês ou fui eu que percebi mal? ...Deixa estar! Em vez de responderes ouve o que te digo: A conta vai ser paga por um daqueles dois tipos. Até te dizia que era o mais baixo, não fosse estar demasiado ébrio para citar detalhes" e apontou sorrindo, para um indivíduo baixote de tez morena que olhava descaradamente para a namorada do segundo, um largueirão avolumado a esteróides, acompanhado da "puta" e dos outros dois "estarolas".

Petey protestou, mas havia um ingrediente secreto no timbre do bêbado a dar-lhe a volta à cabeça. Simpatia. Uma das palavras menos conhecidas no universo da clientela do Sally's, tendo-se tornado um bem escasso nessa vida de barman. A urbe era frequentada por gente rude o suficiente para nem se incomodar a despir o fato de macaco, antes de fugir para a "sexta à noite" e Lester jogou essa carta com extrema precisão. O seu "triplo, sem gelo" não tardaria a chegar. - "É pena Petey... até sou irlandês..." murmurou para si num esgar de gozo.

No dia de São receber a festa era dos empregados, que iam e vinham enquanto as horas passavam. E nas tais cogitações de Lester Pepper não haveria pior emprego que o de vadio. Hora de pagar. Levantou-se, dirigindo-se ao segundo na contagem, o tal "guarda-fatos":

- "Boa noite, amigo."
- "Não sou teu amigo. Desanda."
- "Quanto vale uma dose?"
- "Hein?! Quem é que pensas que és?! Já te vi na vida?! Desaparece-me da frente seu agarrado de merda!"
- "Antes disso diz-me uma coisa. A coca que tens no bolso paga a porca que está levar com ele no WC? O produto foi feito para o lucro e ela está levar de graça, amigo."
- "Que estás para aí a dizer?!" e voltou-se para os macacos "Um tipo não pode falar com ninguém que vocês deixam-se dormir? Onde é que ela foi?!"
- "Vou andando, amigo" e acenou ao barman com o copo vazio. Pousou-o no balcão e despediu-se - "O meu amigo trata da conta!".

"De que serve a vida se não nos matamos um bocadinho?" era o lema de Lester Pepper.

sábado, 8 de setembro de 2012

Os Olhos do Sul: III - Santuário

Passo a passo, haviam três dias que tinha deixado Texarkana, depois de executar os seus perseguidores. Aos agentes que o escoltavam demonstrou a sua faceta mais misericordiosa e deixou-os na bagageira. Vários anos num buraco tiram o sentido de conforto a um homem, mais a um que não compreende porque está vivo - no entanto, eles pareciam integrados o suficiente para testar a claustrofobia por umas horas. Tomou uma camioneta de transporte de aves, dissimulado na traseira, para em trocar de boleia em Shreveport na direcção de Lafayette, Louisiana.

Viajar de noite tem que se lhe diga. Tem até animais no meio da estrada, quem sabe atraídos pela luz dos faróis ou apenas desprovidos do instinto básico, que leva qualquer criatura com ambições de sobrevivência a não se mandar para a frente de um corpo a 75 milhas por hora. Existem picos de sono, queiramos ou não, a meio de uma conversa sem interesse. Essencialmente, tem paragens para descanso e para utilizar os lavabos. Numa dessas paragens, Kurt saiu do carro em direcção ao WC, tal como o condutor da pickup GMC, de seu nome Roland. O sono e a fome só priorizaram sua a necessidade de alívio, a única cuja satisfação era possível na altura. Aquele minuto, desde o desabotoar das calças ao esfregar das mãos é sagrado. Kurt sabia-o e Roland sabia-o. Mais desperto que nunca, abriu a porta com um ar triunfante e realizado, contemplando a área de descanso: Um pequeno parque de merendas a este, a encruzilhada de estradas para oeste e o estacionamento a norte; a carrinha GMC, essa abandonava agora o estacionamento a grande velocidade. Ficou o cheiro a borracha queimada e, pois claro, o pendura.

Deixado à sua mercê num estacionamento deserto no meio da noite, pouco depois de Bunkie, Lousianna, decidiu continuar a andar. Não sabia para onde ia, apenas saiu da Interstate 49 e enveredou por outro caminho em direcção a Lafayette. Caminhou por pequenas povoações, mantendo para si que os seus bolsos vazios e a imagem deslavada não lhe permitiam pedir ajuda nem trabalho. Muito menos mendigar. Não o faria, pois não sabia nem tolerava fraquejar dessa maneira. "Que humilhação, ser atirado para berma da estrada por um campónio que tirou partido das suas necessidades básicas" - pensava e repensava, enquanto puxava pelas pernas.

Com alguma frequência, quando um sujeito olha para o horizonte quase consegue agarrar as folhas das árvores e pisar a terra, sem que o resto importe. Essa é a vontade e o crer, o espírito do homem de sangue fresco. É, mas está calor, arde na cabeça e pesa no corpo, sem alimento nem descanso. A vontade é quebrada e o crer não levanta os braços à altura dos ombros, quanto mais dar outros dois passos na direcção do abismo horizontal, mesmo diante dos olhos. A obstinação férrea é o que leva ao limite e dá esses dois passos sem pernas, rastejando e percorrendo os centímetros na areia como se fossem metros.

- "Olha para ti. Tremes por todo o lado. Há quanto tempo não paras ? Há quantos dias vagueias sem rumo? Descansa e permite-te a pensar no que fizeste..." pregava Sarah num eco constante.
- "Cala-te! Deixa-me andar que preciso de andar. Quero andar! Quero, quero ir, estás a ouvir?!" retorquiu Kurt desarticuladamente, num sopro quase tão seco como a sua boca.

A aparição foi subitamente interrompida por uma bátega de água fria que se abateu sobre o seu rosto, quase enterrado na areia. Entre urros que não distinguia, ao fundo uma voz de criança exclamava - "ele não acorda pai! e agora?" - E caiu, mais uma vez, a água sobre ele, correndo o fio pelo pescoço abaixo. - "Estou acordado!" bufou. Erguiam-se defronte do seu corpo prostrado duas pessoas: um homem e o seu filho. O pai, era um individuo esguio com barba loura de traços grisalhos, vestia casaco e camisa negros com calças de ganga e botas de trabalho. Já o filho aparentava os traços de uma criança saudável e estava aperaltado com um fato domingueiro. - "É um bêbado, paizinho?" - "Não sei filho...". E seguiram mirando, até ele se levantar. Na margem do riacho, que dividia a estrada a vegetação crescia em redor num verde muito vivo, com ervas altas e arbustos acercados das árvores. Via um rapaz de cara redonda sorrindo timidamente e apreensivo, olhando, ora para o pai ora para o estranho. A dor latejante na zona lombar não fazia esquecer a moinha nas costelas, entorpecendo-lhe o raciocínio e o discurso. Levantou-se para logo ceder.

- "Não sei se me estão a empurrar para fora do caminho, em todo o caso só precisei de um refresco..." disse, tombando o corpo para cima dos viajantes.
- "Quer que o deixe nalgum lado? Certamente, não está capaz para andar..." falou o pai.
- "Mais umas horas e volto à estrada, não pensem que vou ficar aqui! Quem são vocês?!"
- "Willard Ledeux, cavalheiro. Reverendo da Igreja da Colheita Reformada. Diga lá amigo, está embriagado?";
- "Hein? E o rapaz?";
- "Meu filho..., ouviu o que lhe perguntei?";
- "Reze por mim daqui a umas horas padre...", e voltou a deitar-se no chão.

O reverendo segredou ao ouvido do filho e o rapaz, bem ordenado, abriu a bagageira da pickup - "Permita-me a graça de lhe facultar uma refeição quente e uma cama na minha missão, senhor..." - Kurt escutava admirado com o desprendimento do cúria, que se ajoelhou à sua altura, em súplica.
Reuniu todas as suas forças para declinar a oferta, apercebendo-se lentamente de estar a lutar contra si próprio.
- "...escute padre... não quero parecer mal e não nego que até posso dar ares de perdido, mas Deus não quer o meu tipo na sua casa, percebe-me?";
- "Deus não distingue... e eu não quero falar a sua palavra a ouvidos moucos. Asseguro-lhe apenas que não é o primeiro. Do seu tipo, já eu fui. Perdido?! Evadido, sabe-se lá de que buraco e agora lançado ao mundo...";
- "...cumpri a minha pena padre e não cobro nada a quem não esteja a dever!";
- "Bem sei filho, bem sei... e já li essas palavras na lápide de muito homem. Deus não sente, mostra... Prometo uma refeição quente e cama por uma noite. Mais que isso... bem, faz-me jeito uma mãozinha a mais na missão. É justo para si?";
- "Não tem medo padre? Um tipo como eu, junto da família?";
- "Sou só eu e o Nicholas, a minha esposa já não está entre nós. Afianço-lhe no que Deus não mostra aos incautos, sabemos tomar conta um do outro.", disse batendo na jaqueta. - "O pai tem uma pistola! Bam, bam!", brincou Nicholas, sem que o reverendo esboçasse um sorriso.

Os dois homens olhavam fixamente um para o outro, Willard, sereno e firme, enquanto Kurt cerrava os dentes para se esquecer do buraco no estômago, das dores nas costas e do receio de confiar noutro ser humano novamente. - "Como se chama o senhor?" perguntou Nicholas. - "Kurt, sou o Kurt. Vamos já, pode ser, Nicholas?" - agora munidos da distracção que precisavam para sair empatados do duelo de olhares, os dois homens apertaram a mão e levantaram-se.

A poucas milhas acima, erguia-se a igreja no meio do mato verdejante. Um edifício velho em madeira, mediocremente conservado, despojado da sua cor original pelo sol e chuva, sem se poder afirmar com certeza de ser corrido a frestas ou tinta estalada. Nas traseiras estava o barracão de ferramentas e dispensa, rodeado dos lados por um galinheiro e por uma clareira, onde assentavam várias colmeias. No interior, a casa do senhor não escondia luxos: dois quartos e uma cozinha ensaiada; lá fora, mas contíguos ao edifício principal haviam, em cantos opostos, uma retrete e um chuveiro.

As tarefas eram simples, ainda que árduas: levantar ao raiar do sol; tratar das colmeias com o reverendo, inspeccionando e mantendo-as contra aves migratórias, verificar a população de abelhas e recolher o mel ou voltar os favos; tratar do galinheiro, limpando-o, recolhendo os ovos e alimentando as galinhas. Ao longo do dia os fieis do bayou visitavam a igreja, eram trabalhadores dos viveiros de camarão, agricultores ou criadores de gado e todos eles ajudavam o pai Ledeux com pequenas oferendas. Aos Domingos o reverendo falava abertamente à pequena congregação desse meio rural, sobretudo da entreajuda na comunidade e da fé em Deus, que através dos vizinhos chegaria até ao mais pobre. De tarde haviam pequenos convívios no rio, onde se bebia, cantava, cozinhava e até testava a pontaria nas garrafas vazias.

Kurt respirava pureza, não tanto do ar como dos espíritos. Sarah era hoje uma ferida cauterizada, via-a no horizonte para onde não queria olhar e onde ela não se mostrara mais. Em divagações, chegou questionar Willard se não teria sido assombrado por um espírito profano repelido pela santidade desta casa. No entanto, insistia em guardar para si todos os detalhes do seu passado e a discussão terminou com um - "...deve ser a humidade do rio que me põe estes pensamentos na ideia. Não vamos maçar Deus com devaneios sem sentido" - De facto, quanto mais cortava relações com os mortos, mais se ambientava aos costumes dos vivos. Apreciava a companhia de Willard e Nicholas, a maneira como viviam tranquilamente, em linha recta, sem desejos de fazer o mundo pagar pelo que lhes havia tirado. - "Por quanto tempo?" questionava o seu íntimo.

segunda-feira, 3 de setembro de 2012

Os Olhos do Sul: II - III (Intervalo)

Dois primos cajun, em passeio com a família pelo Arkansas, acordam sobressaltados pelos eventos da noite passada:

- "Bo' dia Dud, iss' é que fou uma confusion des diabes onté..."
- "Né outra cous' sena' verdade. Aquel' sujeite trouxe o Inferne con el´; Or' vide tu que pega des moçes e quita-lhes a vide sé mais... num se faz."
- "...falo'-me Marie que le matou ca force du demón."
- "Da policie sai' que vai un pendurad' e no últime, assomad' à pont' daqui, que lo sufeco' con óil."
- "Avec huile?! Mon dieu..."
- "É verdad' mon ami... Fue horrível: lo turturrou par l'informaçon e quand na' le diz, le poen óil p'la boca."
- "Nes pa... l' éncontraron les malandres?"
- "Non. É Piore ils pensen que fue un só..."
- "Le fin é próxime, prim' Dud... Tres Próxime"