sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

Ponto de Fuga: Por Estas Paragens... (IV)


Sempre achei que não existem estações no Arizona, só o calor algoz do deserto pontuado por raros pingos de chuva. - "Com este calor todo não admira os sacanas gostarem de andar aos tiros!" soltou S. enquanto sacudia o cabelo. O ponteiro marcava 90 mph, mas não sentia uma brisa, como se voassemos numa nuvem de algodão quente. S. tinha uma sensualidade natural: debaixo deste sol queria tirar-lhe os Wayfarers e agarrar-lhe o cabelo, provando-lhe a alma pela pele. Sentia-me vampiresco, o horizonte parecia um quadro surreal colorido de amarelo torrado com salpicos de verde escuro e toda ela pulsava no vermelho dos meus olhos.

- "Não ouviste nada do que eu disse pois não?!" sorria por detrás dos óculos escuros. - "vamos parar nesta bomba de gasolina, refrescamos e chegamos a Tucson à noite. Acordas até lá?". Tinha de fazer algo quanto àquele sorriso gozão.
- "Queres-me ver fresco é?" e atirei-lhe com o pouco que restava na garrafa de água.
- "Opá cuidado com os estofos!!" guinchou tirando-me a garrafa das mãos para contra-atacar.
- "Não te preocupes que caiu tudo em cima de ti!" ria-me com as mãos chegadas à cara e todo encostado, quase fora do carro. Agora sim soprava uma vento agradável...

A vida na estrada era assim tão simples: "Reelin' In The Years" no rádio, cerveja na mão e logo chega aquele leve odor a pavimento que, por muito estranho que pareça, foi feito para se beber com malte.Na estrada, as outras pessoas, os outros carros são transeuntes. Alguns acompanham-nos nesta aventura, outros, simplesmente passam ao lado. Aos camionistas que nos apitavam, aos motoqueiros que nos passavam, a todos eles brindámos de Bud na mão.

Descendo o Estado pela I-10, Cochise County era o nosso alvo, no entanto caía o entardecer e não tínhamos chegado a Tucson. Um trio de motoqueiros aproxima-se pela retaguarda e no último brinde do dia levanto a garrafa bem alto. Duas chopper e uma Harley. Eles chegam-se demasiado perto, por picardia, por estupidez ou qualquer outra coisa... O maior e mais barbudo solta impropérios que não conheço. Nervosa, S. guina para a direita e a traseira foge. A 160 Km por hora, saímos da berma e a mesma areia quente que abominámos durante o dia voa na direcção das motos, cobrindo-os na cortina. Um despista-se e a força de quatrocentos cavalos do 442 atinge-me em cheio no peito, encostando-me ao banco. Desaparecemos pela estrada fora como sombras na escuridão.

Ao pôr-do-sol, saímos da Interstate e enveredamos por uma estrada velha nos arredores de Benson, quando finalmente nos dispomos a entregar o pacote de J., cuja morada remetia a um diner à beira da estrada. Completamente fora do mapa, aguardava-nos uma estrurura em madeira, pintada de modo a imitar aqueles restaurantes típicos dos cinquentas. A pintura desvanecida e seca, tinha estalado e no seu lugar estendiam-se farpas enormes. Em cima o letreiro decalcado em ferro lia "Moonpie Road Stop", ao que à entrada complementava um contraplacado escrito em tinta de spray "Prove a Tarte de Limão em creme merengue: 5$, vale 1$ Gasolina". Para compor o conjunto, dois degraus em escadote cuidadosamente alinhados ao lado um do outro, subiam os clientes à porta.

A empregada, equipada com bloco de notas, avental e rede para o cabelo, era Doris: cinquentona, cansada e ligeiramente áerea, serviu-nos de imediato ainda que não tivéssemos pedido nada. - "Boa tarde meninos, provem um pedaço da nossa especialidade! A tarte lunar leva bolacha, chocolate e..." - o silêncio era desconfortável e assaltou-me a ideia que a cabeleira tipo palha desfeita de Doris tinha razão de ser.
- "limão em creme merengue?" vociferámos em uníssono, enquanto a despassarada assentia insistentemente com a cabeça.
Não é que ousasse desconfiar da empregada, mas quis tratar de negócios primeiro - "antes disto podemos entregar-lhe o pacote de J., é que estivémos o dia inteiro em viagem e nesta altura já cansa... só para evitar esquecimentos, percebe?";
- "ahahahah" ria nervosa - "O senhor J. disse para continuarem a viagem, depois diz onde...";
- "...paga a gasolina?" disparou S., deixando Doris visivelmente desconfortável.
- "se quiserem, o meu filho ajuda-vos com isso, afinal vocês pediram as tartes... ele está nas traseiras" concluiu, desparecendo pela porta da frente.

S. e eu olhámos um para o outro culposamente, assumindo no intímo que perturbámos o equilibrio mental da pobre criatura. As tartes, secas e duras, não deixaram o prato em que foram servidas. Levantámo-nos e saímos pela porta da frente, levando S. o carro às traseiras. Deste lado, contíguo ao restaurante, erguia-se um telheiro em madeira. George, tal como fora apresentado pela sua mamã, vendia, a quem tivesse o azar de passar naquele ermo, gasolina em garrafões de água.

O rapaz adolescente tinha claramente uma deficiência no desenvolvimento: dos cinco ou seis dentes negros que tinha, um saía torto e perturberante do labio rebentado. - "então amigo, hoje vais ganhar umas massas para comprar caramelos? tens ar de quem gosta de caramelos..." brinquei eu. O rapaz contorcia-se num ataque de riso descontrolado, desvendando toda a "cremalheira" desdentada. Logo chegou a mãe que, frenética, o levou pelo braço - "já te disse para não falares com as pessoas!!" ouvia-se do outro lado. Mais uma vez S. recriminou-me com o seu olhar desaprovador.

Despejámos o primeiro garrafão no depósito e a meados do segundo chega George - "Tenje o homém à tua procura. Jama-se Elrod!"; Passei-lhe a mão pela cabeça fingindo compreender tudo e indaguei do que se passava. Lá dentro, o motoqueiro barbudo que nos abordou na estrada falava com Doris. No seu braço direito, para além da tatuagem de um demonio cornudo, saltou-me à vista o bastão de baseball. Não ia sentar-me à mesa e tentar dialogar com este tipo. Voltei ao telheiro o mais depressa possível e, ofegante, tirei o garrafão das mãos de S. - "vamos embora môr! Sarilhos!" apesar de ter sido o mais explícito possível ela não ouviu. Num movimento, larguei uma nota de vinte a George e saltei para o banco - "vamos! rápido!". Ela obedeceu e os pneus do 442 chiaram dando a volta ao diner. Cá à frente o sacana trapalhão estatelou-se ao comprido no chão saindo pelos degraus improvisados. S. aproveitou a deixa para lhe despejar o segundo garrafão de gasolina por cima da moto. Não nos apanharia desta vez.

Extasiados pelo sucedido, ríamos como George: - "viste aquilo?!"; "olha a lata daquele tipo vir atrás de nós?!"; "filho da ..." gritava S. quase de modo histérico. O medo de sermos apanhados guiou-nos pela noite dentro, só parando no Novo México.

À beira do cansaço extremo, levei-nos para fora da I-10 e novamente trocámos a estrada pelo deserto. Perto de Las Cruces, atrás de uns arbustos, tapámo-nos com um cobertor e adormecemos em cima do capot. Não havia lua esta noite e cada grão de areia que mexia soava a perigo. Por estas paragens haviam coisas piores que cobras, coiotes e motards: os desaires do filho e a vergonha da mãe presos à terra, deixam-me a ideia que só dentro do carro seríamos autênticos. Fomos imprudentes, no entanto não consegui disfarçar o esgar de triunfo quando a manhã raiou.

Ponto de Fuga: O Grande Desconhecido (III)


“Freedom (n.): To ask nothing. To expect nothing. To depend on nothing.” — Ayn Rand, The Fountainhead

Há uma presença que nos guia, o espectro de um objectivo. Uma atitude. Um modo de estar. Esteve lá desde que nos conhecemos, no entanto levamos anos para o reconhecer. Há um padrão, um circuito de ideias de coisas, atraindo-nos em círculos. Um blusão de cabedal, um olhar de soslaio ou o vento a rasgar aos ouvidos, como agora...

É impossível deixar a grande LA, as saídas multiplicam-se e parece que ficamos no mesmo lugar. A quantidade de caminhos, ramais e junções não parece uma criação humana. Da I-5, pela I-405, fugindo de LAX as estradas são números bem reais. Tantas tentações: Santa Monica, Long Beach, Sherman Oaks, Bel Air ou Beverly Hills. Hollywood é opulento e está presente no imaginário a todo o instante, como se fossemos personagens de todos aqueles filmes... encarnando caras no cenário ou figurantes desfocados.

No rádio vive um pregador, independentemente do posto, forma-se uma amálgama de mensagens com o mesmo destinatário, numa alegre conversa que orquestro com o manípulo: "encontre a luz!; só este fim-de-semana, promoção inédita no hotel Palm Bay; fiquem com a mais recente sensação da pop...; vem daí irmão, abraça a vida; com o patrocínio Dino's Bar & Grill...; ahah e vira-se para mim e chama-me mentiroso!! na cara!!; hoje no Senado...;"
- "pára com isso..." irrompeu S., empurrando a cassete, enquanto a alma de Al Brown profere sem misericórdia "...there ain't no love in heart of the city...". Tão cortantes as suas palavras revelaram a "presença".

Num gesto de necessidade escapista, envolvi-a candidamente num beijo, em que ficámos alheios dos "destinatários", de quem vai para o trabalho, das mães que vão buscar os filhos à escola, das crianças aborrecidas no banco de trás. Já não éramos livres: não pedimos nada, não esperámos nada, mas dependíamos um do outro para fugir. Faz falta alguém em quem tocar para lá da alavanca das mudanças, alguém que nos mude as estacões de rádio, olhando-nos sempre da mesma maneira mesmo enquanto, sujos de escape preto na cara, comemos um hambúrguer gorduroso em cima do tablier.

É um caminho emocionante, ainda que ao mesmo tempo pachorrento, da I-10 em direcção este por Beaumont no Riverside County. Palm Springs mesmo aqui ao lado com as suas moradias de luxo, piscinas e palmeiras enclausuradas no vale. Nunca fui muito do Golf e uma das verdades quase absolutas sobre a California, é que deixando de ver o mar tudo o resto é deserto. O pavimento ferve ao Sol, independentemente dos nomes bonitos, dos centros comerciais e dos aeroportos. Finalmente, o Arizona acolhe-nos pela U.S. Route 60, "The Superstition Freeway".

A estrada é exigente e não nos deixa parar, nem lhe convém, porque à sua berma os cabelos não voam, as mãos não tremem e vida estagna. Com S. ao lado e, finalmente fora da cidade, o ponteiro subia pelos Kms em direcção ao grande desconhecido americano.

Ponto de Fuga: 442 (II)


Chegados a L.A. o nevoeiro esmaga-nos, assim que se abrem as portas do comboio. A poluição não permanece apenas no ar, corrompe toda a cidade e suas gentes.
- "Hey, onde mora mesmo esse teu amigo?" – ela não me ouve e o olhar inquiridor que sobra da minha pergunta desfaz-se num espasmo facial. Não evito o soltar de uma lágrima. Talvez, provocado pelo ar viciado ou quem sabe não seria um pronuncio do que estaria para vir.
- "Diz, querido? …o J. mora aqui perto da estação. Não ligues ao que ele diz, ele é mesmo assim".

Procurei assentir com o olhar. Não consegui disfarçar a indiferença. A personalidade idiossincrática do J. era mais uma coisa que fazia parte de um mundo onde nem eu nem ela pertencíamos mais. Tudo podia ser ignorado. Em seguida tomámos um taxi.

Passámos para um bairro de casas baixas, de grades nas portas e janelas e nitidamente sujo. As casas tinham uma lógica comunitária, havia um pátio grande rodeado pelas habitações de 2 ou 3 andares, a escadaria aberta e os corredores eram de livre acesso. Como as pessoas que lá viviam, o meio parecia descartável e barato.

S. esgueira-se pelo buraco de uma vedação de arame que dava para uma parcela de terreno baldio entre 2 prédios. Fugindo pelas ervas e amontoados de lixo, serpenteia até ao outro lado da vedação como se percorresse este caminho todos os dias. Aquela deusa dançando por esse degredo, no seu vestido verde, era uma visão anacrónica de dias de um futuro passado. Dias mais livres, onde a beleza das coisas mais simples era devidamente apreciada.

Subimos por umas escadas iguais a tantas por onde passámos e fomos até ao 3º andar. Lá em baixo o pátio dava um aspecto de abandono: a fonte na entrada estava seca e a cor da estátua parecia sumida e seca; a um canto havia uma pilha de ladrilhos, arrancados ou partidos do chão; e dois cactos cresciam no canteiro, cujas rachas deixavam sair fios de terra, estendidos pelas imediações.

Enquanto olhava para o pátio, J. assoma-se à porta. Nunca o tinha visto, ainda assim, construí uma imagem dele, ou melhor do que esperava dele: Um ganzado simpático, tipo hippie acabado com filosofias de vida mirabolantes, cabelos e barba compridos em roupão e pijama… Por aí, como se o abandono e degradação do prédio se reflectisse no seu inquilino. No entanto, estava redondamente enganado. J. era um homem careca, de feições envelhecidas para a idade, um dealer excêntrico, mas impiedoso. Os seus óculos e fato de treino de designer deixavam transparecer a sua faceta de pedante.

A cumplicidade no cumprimento que dirigiu a S. e a resposta desta aumentou o meu desdém por aquele tipo: “Olá filha!” – “Oi, fofinho…”.
Por dentro a casa reflectia um ar espantosamente sóbrio e arrumado, não que estivesse perfeitamente cuidada, no entanto, não havia nada de efeitos zen\new age à drogado místico. Aquele era o lar do “empresário de psicotrópicos e outras substâncias potenciadoras de consciência”, usando a expressão com que J. se caracterizou.

“Tens o carro?” – perguntou S. “Claro que tenho! Ainda me ofereceram dinheiro por ele… mas, como era teu…” retorquiu J. em tom fanfarrão.
“Já pensaste como vais pagar? Sabes que aos amigos fazem-se favores e tu passaste tanto tempo sem cá vir que nem sei bem se ainda somos amigos” continuou no mesmo tom pedante e fanfarrão.

Tive de me conter. Este tipo conspurcava a presença de S. com a sua atitude subtilmente insidiosa. Ela avisara-me antes de sairmos do comboio – “O que quer que aconteça lá tens de ignorar. Só vamos pelo carro. Confia em mim, ok?”. Quando eles entraram para um quarto e fecharam a porta foi a essas palavras que me agarrei. Paixão. Vem do latim passio, significa suportar, sofrer.

A fé é um instrumento poderoso, com fé conseguimos tudo. Dentro da nossa cabeça, mas conseguimos. Às vezes é isso que nos permite ultrapassar obstáculos e situações fora do nosso controlo. Teria de suportar a sua traição? Óbvio que não. Teria de suportar as minhas dúvidas e desconfianças, que neste exemplo não eram mais que paranóias sem ameaça real. Com certeza, S. detestava tanto o tipo como eu. No entanto, a sua paixão pela nossa liberdade significava suportar a sua presença. “Eu não aguentava…” – murmurei.

Em menos de dez minutos saíram do quarto e ela trazia um embrulho nas mãos. O preço do favor era uma entrega. Assim, ficaríamos todos amigos. J. levou-nos à garagem onde guardara o 442, era assim que S. apelidara o seu carro: um Hurst\Oldsmobile 442 de 1970. Descapotável, vermelho, e um verdadeiro “mastodonte” na estrada com os seus quase 400 cavalos de potência. Havia magia naquele carro, como se pudesse inspirar nos seus estofos o vento de mil quilómetros e olhando para os pneus via alcatrão até onde o horizonte acabava.

Findava-se também a nossa visita e J. estava cada vez mais perto de se tornar num minúsculo ponto no retrovisor. “Vejam lá se não se esquecem de me agradecer!” gritou, por entre o roncar do 442, mexendo os lábios numa conversa muda. Tudo desaparecia, deixando-nos sós neste retiro de metal e borracha. Atrás ficavam aquelas casas falsas, abandonadas pelos seus habitantes, reflexo do seu próprio abandono.

Via nitidamente agora: J. abdicou da sua vida ao tornar-se um mercador da morte. Num ciclo vicioso, tudo nele alterara-se para melhor servir a droga. Um prédio inconspícuo, um interior ostentoso. Uma amiga transformada num “correio”. Tudo mais era descartado, abandonado como o pátio e a fonte, outrora escapes arquitectónicos para aliviar a fachada e um espaço de comunhão. Hoje, a sua manutenção seria uma despesa desnecessária, para os pobres de espírito.

quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

Ponto de Fuga: Despertar (I)



Faíscas. Labaredas. Fogo. É isso que dizem quando duas pessoas se envolvem intensamente. Como se existisse uma resistência natural ao acto mais primário da humanidade. Sendo o esforço para o atingir de tal modo avassalador que, logrando-o, tudo o que resta da sua passagem é um rasto de chamas. Acertei? É isso? Ou estou só lá perto? Para mim, nem isso. Mas posso estar enganado, afinal de contas tenho estado a vivê-lo e só agora me apercebi.

Com o chiar metálico do comboio nas linhas é S. que me preenche as ideias: espreitando distraidamente pela janela, envolve-me no seu perfume natural de cerejas secas ao sol. Isso existe, ao menos? Se calhar devia. É através dela que contemplo a paisagem, perguntando-me se está realmente a observar o oceano descendo por baixo dos carris, acidentadamente percorrendo a linha costeira. Ou não, estará antes, como eu, absorta em abstracções românticas. Pois, provavelmente não.

É disto que falo: não há fogo, nunca houve. Há sim uma segurança e certeza em como viveremos, um no outro. Somos o universo, repleto de possibilidades que já se concretizaram e, só por mera causalidade, o tempo não acompanhou. Ainda. Eis que, para quem recusa a existência de fogo e paixão, parece uma visão bastante calorosa, eu sei.

Até no trepidar da carruagem questiono se o balançar dos seus cabelos é real. Quem mais faria isso? Eu não - diria até há pouco tempo. Antes de nos conhecermos, como que entregues a delírios químicos, crispados por ácido e álcool. Vivi o sonho nestas últimas semanas... duas, três... não importa. Ao longo desses devaneios febris construiu-se o meu ideal de mulher. Compondo-se gradualmente até, por fim, acordar ao meu lado.

Sei o que estão a pensar: este tipo está completamente apanhado ou claro que a pôs num altar. Nem por isso. Aliás, esta imagem, ideal (ou o que lhe queiram chamar), que apareceu turva e só agora se torna clara e distinta, foi devidamente sujeita a tratamento iconoclasta. Comparada com todas as relações que já vivi e injustamente comparada, visto que se trataram de relações falhadas. Isso devia-lhe ter tirado o encanto. Foi aqui que o fogo ardeu? A paixão? O amor à primeira vista? A atracção fatal?

Digo-vos: foi agora, quando candidamente desviou o seu sorriso para a janela e em silêncio descansou a sua mão na minha.
Tudo o resto parou para fugirmos, percorrendo o caminho em carris, à beira-mar. Sem horas e sem plano. Paixão? É sonhar e despertar para nos realizarmos no sonho. Tem tanto a ver connosco como com a outra pessoa, consumidos na descoberta e evoluindo com ela. Pedi-lhe reacção e ela ofereceu-a.

Naquele dia na esplanada, devo ter corrido todos os lugares-comuns, desbloqueadores de conversa e tudo mais para me fazer ver aos seus olhos. Manteve-se morna e distante, diria até altiva, respondia em monossílabos e escondia o olhar. O meu entusiasmo enfadava-a, queria algo mais: teria concedido a este tipo uma aberta e ali estava ele a pôr-se em bicos de pés e a fazer o pino. - "qualquer um pode dizer essas coisas, é só conversa" pensou, afastando a sua mente para longe do meu paparrear. Como em todos os desastres à espera de acontecer muito depois do choque fica o sofrimento, que durou cerca de vinte minutos, até surgir um daqueles olhares pesarosos para o relógio e o "...vou ter de ir agora, tenho ainda trabalho para acabar hoje. Falamos outro dia".

Contam-se dias, meses e anos para evocar um momento excepcional, mas não se contam segundos nem minutos. Os que se seguiram foram determinantes. Peguei num guardanapo e na caneta, escrevinhei: "Pois. Eu também não consegui esperar. Volta para trás!". Dobrei-o sem que tivesse oportunidade de o ler, passando-o para as suas mãos. - "olha, abres quando chegares a casa. Só quando chegares a casa" e fiquei imóvel, enquanto S. se afastava. Sim, deixei a ansiedade tomar conta dos minutos que se seguiram... e voltou. Exclamava agora um sorriso radiante. Era essa a minha natureza. Lembro-me de lhe sussurrar ao ouvido nessa noite "...agora mostra-me a tua".

De volta ao presente, candidamente fixa o seu olhar no meu, a forma como pronunciou aquelas palavras - cortante e incisiva - convenceu-me ainda antes de delas retirar significado: “Preciso de fazer uma viagem. Tenho de voltar para encontrar a minha casa.” – “Eu vou contigo”, respondi. “A nossa casa é onde nos sentimos bem. Tu és a minha casa…”, pensei para mim, sabendo que queria tê-lo dito.