sexta-feira, 12 de março de 2010

A Selva


"Quando, dos Descobrimentos veio o ouro, deixou de existir competição, ficámos isolados do resto do mundo, tudo o que gastámos foi para compensar cegamente os anos de pobreza e tensão, já aí orgulhosamente sós"

"Numa relação desigual uma das partes vive no anseio, pelas migalhas que a outra deixa para trás, numa tensão surreal que leva ao fim da vida a dois"

Andávamos, rastejávamos e trepávamos por esta selva há meses. A M4 pesava no coldre que, gradualmente, se fundia com o meu ombro, o suor queimava nos olhos e as picadas de insectos já não causavam comichão suficiente para nos fazer levantar o braço e coçar. Neste inferno verde, húmido e sufocante, encontrámos a morte, não às mãos do inimigo como o foi pelas da doença, fome, sede e exaustão. Sozinhos, neste paraíso sem proibições nem frutos, deambulávamos, rendidos à distância. Numa guerra vazia.

De uma unidade de 10 homens, só 4 sobravam ao fim do sexto mês na selva. Percorríamos um trilho infinito de floresta virgem, sem saber bem para onde se encaminhava. O mato não dava respostas, ao invés, segredava-nos silenciosamente que o inimigo esperava, furtivo, na tela verde que se erguia diante de nós. Era um labirinto alimentado a clorofila, com vida própria... nós sabíamo-lo e eles também, só precisavam de nos ver baixar a guarda para atacar. Viriam camuflados, de folhas e troncos, de terra e espinhos. A paranóia era a nossa última linha de defesa.

No fim, só sobrariam dois. Num vulgar tu e eu. As nossas conversas seriam mais iguais a cada dia que passasse, os nossos problemas manter-se iam, independentemente do esforço conjunto, e as nossas limitações seriam ainda mais evidentes neste plano hostil. O nosso mundo fitológico, condenar-nos ia à perdição. Tu irias sucumbir à fraqueza e cobardia, aproveitar-te-ias da minha humanidade e por asilo e refúgio me venderias ao inimigo... entregando-me a uma vida vazia.

Num dia abençoado encontrámos a nascente, cujas águas saciam a sede e curam as mágoas do corpo e da mente. Perante a sua visão pensei tratar-se de uma miragem, mas senti o resplandecer e a vitalidade na sua pureza. Foi como se tivesse acordado de um sono prolongado. Senti as marcas da desconfiança e do medo, senti a falta de mais alguém. Via-te agora do outro lado do reflexo, no charco, nas profundezas. Só, sentindo também a minha falta, sem que já nada pudéssemos fazer.

De repente, o inimigo já não importa, estamos descansados e a paranóia não faz sentido. Tudo é muito mais fácil, distantes que estamos, separados pela linha de água.

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