quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

Popalavras #5


A TV ilumina o quarto escuro em laivos de índigo, enquanto duas sombras dançam em redor uma da outra num jogo descoordenado. São Vito não faria melhor. Transpondo-se, invadindo-se e desfigurando-se num só retalho negro. Silvos ofegantes interpolados em gritos guturais - choro - ameaças veladas sem nexo são acreditadas por mais um punho direito ao nariz. Ligeiramente abaixo do alvo, a bota resvala no queixo e abre um corte feio, o sangue esguicha na vertical, enquanto o corpo, jaz inerte na alcatifa. Há um assentir no balançar do braço, como se fosse possível expelir o ódio através daquele ritual domingueiro. Ultimamente, as semanas sucediam-se num só instante, sem que o negrume lhe saísse das maçãs do rosto.

"Blogger Fonemas Invertebrados responde a funcionária de Associação contra violência doméstica: A Nestlé tem tanta culpa como eu"

Era possível ler naquele blog o ridículo da associação da quadra festiva ao disparo dos casos de agressões entre casais. Saltavam acusações de que a ingestão desmedida de chocolates provoca a antecipação cega do incremento do "pneu" em volta da cintura "delas", combinadas com a falta de álcool suficiente para deitar abaixo um sujeito cheio de bacalhau e peru até às orelhas. Concluindo com a inevitável machadada na programação televisiva, salpicada por reality shows, filmes infantis ou comédias românticas. Tudo isto levava à crispação no seio do lar e em toda a sua legitimidade, o arremesso da testa à parede era o desporto favorito dos portugueses nestes dias.

"Esse senhor é um porco, tolinho e sem qualquer noção do sofrimento dos verdadeiramente oprimidos: AFIRMA RESPONSÁVEL DE ORGANIZAÇÃO SOLIDÁRIA"
 
O Natal dos Silvas continua no lanço de escadas, com uma mensagem sentida: "Na minha casa só tem manias quem paga estadia", disse com ira, cerrando a porta atrás de si. O televisor continua ligado e a emissão prossegue no canal noticioso, onde Fonemas Invertebrados prossegue a sua defesa "Até parece que os anúncios para iogurtes não dizem algo semelhante?! Vejam lá se aparecem cinturas descaídas? Nem no da Ferrero Rocher. Meus amigos, ao fim de um tempo as pessoas descuidam-se com a forma e há ou não há, em qualquer relação dita abusiva, um princípio de amor. É distorcido, é, mas também genuíno. Claro, que parece melhor, a quem só lê as letras grandes, dizer que nada disto faz sentido. É rebuscado. Pessoas, como a senhora que me insiste em atacar nos media, preferem passar uma mão pela cabeça e deixar o caso entregue à polícia, que faz nada ou muito pouco. Nesses intervalos de tempo, o problema agrava-se, a vítima volta para casa e ouve o tão comum pedido de desculpas... até à próxima vez. E jogar a culpa nos produtos como eu fiz faz tanto sentido, como perder tempo de trabalho a preocupar-se mais com opiniões alheias. Será que essa senhora trabalha, de facto? Ou estava a consultar artigos científicos, quando se deparou com o meu texto?".

Solta-se uma lágrima, involuntária e suada, sobre os nós dos dedos. Observando-os ensanguentados desvia o olhar para a garrafa de vinho vazia. A cabeça deixa-se cair sobre o rebordo da poltrona e um suspiro interrompe o silêncio da casa, só a voz distante do escriba na TV consegue abafar os soluços lá de fora. Levanta-se e assoma-se à porta. "Vem amor, não te quero aqui ao frio. Desculpas-me? Não sei o que me deu. Vamos tratar dessas feridas, anda". Aqueles dois corpos magoados recolhem à escuridão, abrigando-se da luz da escada e dos olhares vizinhos espreitando pelo óculo. O blogger termina, alegando: "...Se isto foi assim pelo Natal, nem imagino o Ano Novo".


4 comentários:

Dexter disse...

Brilhante! A verdadeira sátira social, com classe, como não poderia deixar de ser.

JP disse...

Awesome! :D

Luís disse...

:) Muito Obrigado e numa particularidade aqui para o Dexter, foi escrito no rescaldo do Linha Negra ;) Já explica qualquer coisa lol

Dexter disse...

E que tal? Gostaste do final? :)