quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

Popalavras #6


Um dia em descontraída passeata, os pássaros chilream e as árvores a flor cheiram, cai um pequeno caderno do céu. Mesmo à minha frente pestanejo duas vezes para me certificar que me está mesmo a acontecer. É isso mesmo: Sei instantaneamente do que se trata, pois vi a animação japonesa onde um rapaz encontra esse caderno e todos nele nomeados caem como tordos, com um ataque cardíaco. Agora também tenho esse poder!

A ânsia escorre em suor pelas mãos e preciso de dois minutos para me acalmar e perceber a dimensão desta benção, daquele pálido e maligno Deus menor que inspira medo no coração dos Homens desde o início dos tempos. Em seguida abro o caderno e folheio-o: não é novo, mas está impecável - foi escrito e rasgado - como se algum artesão o devolvera à sua forma original.

...Nessa noite...
A, B e C descem ao Pub Irlandês para uma saída tranquila, ainda que por dentro mal consiga conter a excitação da descoberta. A vira-se para o B e, depois de um trago da cerveja, pergunta-lhe "Estás a ver se não te engasgas? Aí a olhar para o vazio...". B não reage e C faz sinal para nos calarmos "Conheci um tipo assim, neste mesmo bar, estava com uma imperial à frente, abananado, a olhar para sabe Deus onde. Passado um bocado outro chega lá para gozar com ele e bebe a cerveja de uma vez. O tipo vira-se e diz-lhe que isso não é assim. O outro lá se desculpa e paga-lhe outra, mas ele continua: Não era assim, porque ele foi despedido, roubaram-lhe a carteira com todo o dinheiro que tinha e chega a casa e apanha a mulher com o padeiro... enfim o pior dia da sua vida e logo quando estava a pensar em acabar com ela chega um gozão e bebe-lhe o veneno" - todos se desatam a rir, excepto B: "Epá a D. anda com um gajo... descobri hoje, quando os encontro na entrada da casa dela aos beijos... não estou chateado, porque sei o que vou fazer, podem estar tranquilos pessoal".

...Agora que já sabem qual deles eu sou...
Aguardo com fervor a chegada deles. D e o biltre aproximam-se de carro e eu saio de encontro a um desconhecido que passava na sua direcção. Ela apercebe-se da minha presença e olha-me de soslaio, finjindo ignorar-me. Passo-lhes ao lado e dirijo-me ao transeunte. Apresento-lhe a minha carteira profissional e invento "Boa noite, o meu nome é B. e estou a conduzir uma averiguação para um acidente que aconteceu aqui há dias..." - "Nem vivo aqui. Desculpe lá." e quis continuar pela rua, mas continuei em ar profissional "Com toda a certeza, mas importa-se de me dizer o seu nome para efeitos profissionais, só para provar que estive aqui hoje" e apontei no caderno. O homem caiu aos meus pés, com um estrondo, fazendo-os voltar para trás. "Deu-lhe uma coisa! Ajudem-me" gritei e o pulha empurra-me para o lado "Tirei um curso de primeiros-socorros..." ou lá o que ele disse, enquanto ela se volta para trás, impressionada. Aproveito o momento e jogo-lhe o trapo ensopado em clorofórmio, segurando-o pelos braços: "Ele desmaiou! Ajuda-me a levá-lo ao teu carro".

...A multidão juntou-se em volta do morto...
"Dá-me as chaves. Vamos ao hospital que o homem já está a ser assistido!" disse para a acalmar. A estúpida amaldiçoava a sua vida no banco de trás e mal se deu conta de termos parado num descampado. Sai e ela saiu também, direita a mim aos gritos, apanhou com um gancho de direita que a deixou estatelada na terra. O seu nariz jorrava um vermelho rubi, resplandecente à luz da lua. Perguntei-lhe como se chamava o artista de circo por quem ela me deixou e não obtive resposta. Com a chave das rodas parti-lhe as pernas e a cabra lá gritou "E.! chama-se E." e desatou a chorar como se tivesse percebido, com o 6º sentido, que nada de bom viria daqui. "Com isso já o mataste, queres ver, olha bem para esse porco!" e escrevi o nome no caderno. O branco dos olhos em agonia viu-se, por momentos, num espasmo. D. chorava silenciosamente qual criança magoada com os pais.

...Cavei a sua supultura...
Perguntei-lhe como queria morrer e, antes que pudesse responder, contei uma anedota: "Num avião em chamas uma mulher diz - se vou morrer, morro como uma mulher - despindo-se pergunta se alguém a quer tomar como tal nesse último momento. Um homem despe-se também e responde - Eu quero! Passa-me essa camisa!". Ela engasgou-se e tossiu sangue. "Cabra até ao fim..." murmurei escrevendo um longo, curvilineo D. e observei-a perecendo na terra. Tapei a campa e limpei tudo onde pudesse ter deixado impressões digitais ou outros vestígios. Conduzi durante quilómetros e deixei aquele pobre filho da mãe no lugar do condutor, para enfiar o carro por uma ribanceira abaixo. Eles haveriam de ver a ironia e ignorar todas as incongruências de tão escarrapachado homícidio. HOMEM MATA MULHER E MORRE DE ENFARTE COM O ARREPENDIMENTO: os jornais completariam o crime perfeito para eu desaparecer no ar da noite.


4 comentários:

JP disse...

Grande relato, se a premissa fosse adaptada num tom minimamente credível era assim que tinha ficado.

Kudos, muitos. :)

Fonemas Invertebrados disse...

Thanks! Sim, esta foi mesmo para a rúbrica...

No entanto, arrisco a dizer que vais gostar do próximo Olhos do Sul ;)

Grande abraço

Dexter disse...

Tu andas mesmo a dar uma de American Psycho ;)

Quando é que fazes a análise ao Sussudio?

Fonemas Invertebrados disse...

Às vezes é mesmo para descomprimir ahahah Fiz agora esta do Phil... a próxima ainda não sei, mas aponto para Talking Heads ;)