sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

Ponto de Fuga: 442 (II)


Chegados a L.A. o nevoeiro esmaga-nos, assim que se abrem as portas do comboio. A poluição não permanece apenas no ar, corrompe toda a cidade e suas gentes.
- "Hey, onde mora mesmo esse teu amigo?" – ela não me ouve e o olhar inquiridor que sobra da minha pergunta desfaz-se num espasmo facial. Não evito o soltar de uma lágrima. Talvez, provocado pelo ar viciado ou quem sabe não seria um pronuncio do que estaria para vir.
- "Diz, querido? …o J. mora aqui perto da estação. Não ligues ao que ele diz, ele é mesmo assim".

Procurei assentir com o olhar. Não consegui disfarçar a indiferença. A personalidade idiossincrática do J. era mais uma coisa que fazia parte de um mundo onde nem eu nem ela pertencíamos mais. Tudo podia ser ignorado. Em seguida tomámos um taxi.

Passámos para um bairro de casas baixas, de grades nas portas e janelas e nitidamente sujo. As casas tinham uma lógica comunitária, havia um pátio grande rodeado pelas habitações de 2 ou 3 andares, a escadaria aberta e os corredores eram de livre acesso. Como as pessoas que lá viviam, o meio parecia descartável e barato.

S. esgueira-se pelo buraco de uma vedação de arame que dava para uma parcela de terreno baldio entre 2 prédios. Fugindo pelas ervas e amontoados de lixo, serpenteia até ao outro lado da vedação como se percorresse este caminho todos os dias. Aquela deusa dançando por esse degredo, no seu vestido verde, era uma visão anacrónica de dias de um futuro passado. Dias mais livres, onde a beleza das coisas mais simples era devidamente apreciada.

Subimos por umas escadas iguais a tantas por onde passámos e fomos até ao 3º andar. Lá em baixo o pátio dava um aspecto de abandono: a fonte na entrada estava seca e a cor da estátua parecia sumida e seca; a um canto havia uma pilha de ladrilhos, arrancados ou partidos do chão; e dois cactos cresciam no canteiro, cujas rachas deixavam sair fios de terra, estendidos pelas imediações.

Enquanto olhava para o pátio, J. assoma-se à porta. Nunca o tinha visto, ainda assim, construí uma imagem dele, ou melhor do que esperava dele: Um ganzado simpático, tipo hippie acabado com filosofias de vida mirabolantes, cabelos e barba compridos em roupão e pijama… Por aí, como se o abandono e degradação do prédio se reflectisse no seu inquilino. No entanto, estava redondamente enganado. J. era um homem careca, de feições envelhecidas para a idade, um dealer excêntrico, mas impiedoso. Os seus óculos e fato de treino de designer deixavam transparecer a sua faceta de pedante.

A cumplicidade no cumprimento que dirigiu a S. e a resposta desta aumentou o meu desdém por aquele tipo: “Olá filha!” – “Oi, fofinho…”.
Por dentro a casa reflectia um ar espantosamente sóbrio e arrumado, não que estivesse perfeitamente cuidada, no entanto, não havia nada de efeitos zen\new age à drogado místico. Aquele era o lar do “empresário de psicotrópicos e outras substâncias potenciadoras de consciência”, usando a expressão com que J. se caracterizou.

“Tens o carro?” – perguntou S. “Claro que tenho! Ainda me ofereceram dinheiro por ele… mas, como era teu…” retorquiu J. em tom fanfarrão.
“Já pensaste como vais pagar? Sabes que aos amigos fazem-se favores e tu passaste tanto tempo sem cá vir que nem sei bem se ainda somos amigos” continuou no mesmo tom pedante e fanfarrão.

Tive de me conter. Este tipo conspurcava a presença de S. com a sua atitude subtilmente insidiosa. Ela avisara-me antes de sairmos do comboio – “O que quer que aconteça lá tens de ignorar. Só vamos pelo carro. Confia em mim, ok?”. Quando eles entraram para um quarto e fecharam a porta foi a essas palavras que me agarrei. Paixão. Vem do latim passio, significa suportar, sofrer.

A fé é um instrumento poderoso, com fé conseguimos tudo. Dentro da nossa cabeça, mas conseguimos. Às vezes é isso que nos permite ultrapassar obstáculos e situações fora do nosso controlo. Teria de suportar a sua traição? Óbvio que não. Teria de suportar as minhas dúvidas e desconfianças, que neste exemplo não eram mais que paranóias sem ameaça real. Com certeza, S. detestava tanto o tipo como eu. No entanto, a sua paixão pela nossa liberdade significava suportar a sua presença. “Eu não aguentava…” – murmurei.

Em menos de dez minutos saíram do quarto e ela trazia um embrulho nas mãos. O preço do favor era uma entrega. Assim, ficaríamos todos amigos. J. levou-nos à garagem onde guardara o 442, era assim que S. apelidara o seu carro: um Hurst\Oldsmobile 442 de 1970. Descapotável, vermelho, e um verdadeiro “mastodonte” na estrada com os seus quase 400 cavalos de potência. Havia magia naquele carro, como se pudesse inspirar nos seus estofos o vento de mil quilómetros e olhando para os pneus via alcatrão até onde o horizonte acabava.

Findava-se também a nossa visita e J. estava cada vez mais perto de se tornar num minúsculo ponto no retrovisor. “Vejam lá se não se esquecem de me agradecer!” gritou, por entre o roncar do 442, mexendo os lábios numa conversa muda. Tudo desaparecia, deixando-nos sós neste retiro de metal e borracha. Atrás ficavam aquelas casas falsas, abandonadas pelos seus habitantes, reflexo do seu próprio abandono.

Via nitidamente agora: J. abdicou da sua vida ao tornar-se um mercador da morte. Num ciclo vicioso, tudo nele alterara-se para melhor servir a droga. Um prédio inconspícuo, um interior ostentoso. Uma amiga transformada num “correio”. Tudo mais era descartado, abandonado como o pátio e a fonte, outrora escapes arquitectónicos para aliviar a fachada e um espaço de comunhão. Hoje, a sua manutenção seria uma despesa desnecessária, para os pobres de espírito.

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