sábado, 8 de setembro de 2012

Os Olhos do Sul: III - Santuário

Passo a passo, haviam três dias que tinha deixado Texarkana, depois de executar os seus perseguidores. Aos agentes que o escoltavam demonstrou a sua faceta mais misericordiosa e deixou-os na bagageira. Vários anos num buraco tiram o sentido de conforto a um homem, mais a um que não compreende porque está vivo - no entanto, eles pareciam integrados o suficiente para testar a claustrofobia por umas horas. Tomou uma camioneta de transporte de aves, dissimulado na traseira, para em trocar de boleia em Shreveport na direcção de Lafayette, Louisiana.

Viajar de noite tem que se lhe diga. Tem até animais no meio da estrada, quem sabe atraídos pela luz dos faróis ou apenas desprovidos do instinto básico, que leva qualquer criatura com ambições de sobrevivência a não se mandar para a frente de um corpo a 75 milhas por hora. Existem picos de sono, queiramos ou não, a meio de uma conversa sem interesse. Essencialmente, tem paragens para descanso e para utilizar os lavabos. Numa dessas paragens, Kurt saiu do carro em direcção ao WC, tal como o condutor da pickup GMC, de seu nome Roland. O sono e a fome só priorizaram sua a necessidade de alívio, a única cuja satisfação era possível na altura. Aquele minuto, desde o desabotoar das calças ao esfregar das mãos é sagrado. Kurt sabia-o e Roland sabia-o. Mais desperto que nunca, abriu a porta com um ar triunfante e realizado, contemplando a área de descanso: Um pequeno parque de merendas a este, a encruzilhada de estradas para oeste e o estacionamento a norte; a carrinha GMC, essa abandonava agora o estacionamento a grande velocidade. Ficou o cheiro a borracha queimada e, pois claro, o pendura.

Deixado à sua mercê num estacionamento deserto no meio da noite, pouco depois de Bunkie, Lousianna, decidiu continuar a andar. Não sabia para onde ia, apenas saiu da Interstate 49 e enveredou por outro caminho em direcção a Lafayette. Caminhou por pequenas povoações, mantendo para si que os seus bolsos vazios e a imagem deslavada não lhe permitiam pedir ajuda nem trabalho. Muito menos mendigar. Não o faria, pois não sabia nem tolerava fraquejar dessa maneira. "Que humilhação, ser atirado para berma da estrada por um campónio que tirou partido das suas necessidades básicas" - pensava e repensava, enquanto puxava pelas pernas.

Com alguma frequência, quando um sujeito olha para o horizonte quase consegue agarrar as folhas das árvores e pisar a terra, sem que o resto importe. Essa é a vontade e o crer, o espírito do homem de sangue fresco. É, mas está calor, arde na cabeça e pesa no corpo, sem alimento nem descanso. A vontade é quebrada e o crer não levanta os braços à altura dos ombros, quanto mais dar outros dois passos na direcção do abismo horizontal, mesmo diante dos olhos. A obstinação férrea é o que leva ao limite e dá esses dois passos sem pernas, rastejando e percorrendo os centímetros na areia como se fossem metros.

- "Olha para ti. Tremes por todo o lado. Há quanto tempo não paras ? Há quantos dias vagueias sem rumo? Descansa e permite-te a pensar no que fizeste..." pregava Sarah num eco constante.
- "Cala-te! Deixa-me andar que preciso de andar. Quero andar! Quero, quero ir, estás a ouvir?!" retorquiu Kurt desarticuladamente, num sopro quase tão seco como a sua boca.

A aparição foi subitamente interrompida por uma bátega de água fria que se abateu sobre o seu rosto, quase enterrado na areia. Entre urros que não distinguia, ao fundo uma voz de criança exclamava - "ele não acorda pai! e agora?" - E caiu, mais uma vez, a água sobre ele, correndo o fio pelo pescoço abaixo. - "Estou acordado!" bufou. Erguiam-se defronte do seu corpo prostrado duas pessoas: um homem e o seu filho. O pai, era um individuo esguio com barba loura de traços grisalhos, vestia casaco e camisa negros com calças de ganga e botas de trabalho. Já o filho aparentava os traços de uma criança saudável e estava aperaltado com um fato domingueiro. - "É um bêbado, paizinho?" - "Não sei filho...". E seguiram mirando, até ele se levantar. Na margem do riacho, que dividia a estrada a vegetação crescia em redor num verde muito vivo, com ervas altas e arbustos acercados das árvores. Via um rapaz de cara redonda sorrindo timidamente e apreensivo, olhando, ora para o pai ora para o estranho. A dor latejante na zona lombar não fazia esquecer a moinha nas costelas, entorpecendo-lhe o raciocínio e o discurso. Levantou-se para logo ceder.

- "Não sei se me estão a empurrar para fora do caminho, em todo o caso só precisei de um refresco..." disse, tombando o corpo para cima dos viajantes.
- "Quer que o deixe nalgum lado? Certamente, não está capaz para andar..." falou o pai.
- "Mais umas horas e volto à estrada, não pensem que vou ficar aqui! Quem são vocês?!"
- "Willard Ledeux, cavalheiro. Reverendo da Igreja da Colheita Reformada. Diga lá amigo, está embriagado?";
- "Hein? E o rapaz?";
- "Meu filho..., ouviu o que lhe perguntei?";
- "Reze por mim daqui a umas horas padre...", e voltou a deitar-se no chão.

O reverendo segredou ao ouvido do filho e o rapaz, bem ordenado, abriu a bagageira da pickup - "Permita-me a graça de lhe facultar uma refeição quente e uma cama na minha missão, senhor..." - Kurt escutava admirado com o desprendimento do cúria, que se ajoelhou à sua altura, em súplica.
Reuniu todas as suas forças para declinar a oferta, apercebendo-se lentamente de estar a lutar contra si próprio.
- "...escute padre... não quero parecer mal e não nego que até posso dar ares de perdido, mas Deus não quer o meu tipo na sua casa, percebe-me?";
- "Deus não distingue... e eu não quero falar a sua palavra a ouvidos moucos. Asseguro-lhe apenas que não é o primeiro. Do seu tipo, já eu fui. Perdido?! Evadido, sabe-se lá de que buraco e agora lançado ao mundo...";
- "...cumpri a minha pena padre e não cobro nada a quem não esteja a dever!";
- "Bem sei filho, bem sei... e já li essas palavras na lápide de muito homem. Deus não sente, mostra... Prometo uma refeição quente e cama por uma noite. Mais que isso... bem, faz-me jeito uma mãozinha a mais na missão. É justo para si?";
- "Não tem medo padre? Um tipo como eu, junto da família?";
- "Sou só eu e o Nicholas, a minha esposa já não está entre nós. Afianço-lhe no que Deus não mostra aos incautos, sabemos tomar conta um do outro.", disse batendo na jaqueta. - "O pai tem uma pistola! Bam, bam!", brincou Nicholas, sem que o reverendo esboçasse um sorriso.

Os dois homens olhavam fixamente um para o outro, Willard, sereno e firme, enquanto Kurt cerrava os dentes para se esquecer do buraco no estômago, das dores nas costas e do receio de confiar noutro ser humano novamente. - "Como se chama o senhor?" perguntou Nicholas. - "Kurt, sou o Kurt. Vamos já, pode ser, Nicholas?" - agora munidos da distracção que precisavam para sair empatados do duelo de olhares, os dois homens apertaram a mão e levantaram-se.

A poucas milhas acima, erguia-se a igreja no meio do mato verdejante. Um edifício velho em madeira, mediocremente conservado, despojado da sua cor original pelo sol e chuva, sem se poder afirmar com certeza de ser corrido a frestas ou tinta estalada. Nas traseiras estava o barracão de ferramentas e dispensa, rodeado dos lados por um galinheiro e por uma clareira, onde assentavam várias colmeias. No interior, a casa do senhor não escondia luxos: dois quartos e uma cozinha ensaiada; lá fora, mas contíguos ao edifício principal haviam, em cantos opostos, uma retrete e um chuveiro.

As tarefas eram simples, ainda que árduas: levantar ao raiar do sol; tratar das colmeias com o reverendo, inspeccionando e mantendo-as contra aves migratórias, verificar a população de abelhas e recolher o mel ou voltar os favos; tratar do galinheiro, limpando-o, recolhendo os ovos e alimentando as galinhas. Ao longo do dia os fieis do bayou visitavam a igreja, eram trabalhadores dos viveiros de camarão, agricultores ou criadores de gado e todos eles ajudavam o pai Ledeux com pequenas oferendas. Aos Domingos o reverendo falava abertamente à pequena congregação desse meio rural, sobretudo da entreajuda na comunidade e da fé em Deus, que através dos vizinhos chegaria até ao mais pobre. De tarde haviam pequenos convívios no rio, onde se bebia, cantava, cozinhava e até testava a pontaria nas garrafas vazias.

Kurt respirava pureza, não tanto do ar como dos espíritos. Sarah era hoje uma ferida cauterizada, via-a no horizonte para onde não queria olhar e onde ela não se mostrara mais. Em divagações, chegou questionar Willard se não teria sido assombrado por um espírito profano repelido pela santidade desta casa. No entanto, insistia em guardar para si todos os detalhes do seu passado e a discussão terminou com um - "...deve ser a humidade do rio que me põe estes pensamentos na ideia. Não vamos maçar Deus com devaneios sem sentido" - De facto, quanto mais cortava relações com os mortos, mais se ambientava aos costumes dos vivos. Apreciava a companhia de Willard e Nicholas, a maneira como viviam tranquilamente, em linha recta, sem desejos de fazer o mundo pagar pelo que lhes havia tirado. - "Por quanto tempo?" questionava o seu íntimo.

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