Calças de ganga Lee 101, T-shirt velha dos Doobie Brothers, botas
Chippewa e um casaco de cabedal castanho que nem sequer era dele -
"aqui estão os seus pertences"
- um relógio Tag-Heuer, literalmente parado no tempo, uma carteira com a
carta de condução, 40 dólares e o bilhete de autocarro Interstadual. A
roupa ficava-lhe ligeiramente larga - por tudo o que perdera nos últimos
cinco anos o peso havia-se transformado em músculo - o relógio já não o
servia. -
"Tenho tempo de sobra, queres comprá-lo?" perguntou a Gutterson. O guarda fez-lhe sinal para se calar e passou-lhe uma nota de 10 para a mão.
Tommy "Crow" Livingston imaginava tudo isto a acontecer, enquanto
esperava do lado de fora da cadeia. Acompanhava com o olhar cada passo
de Kurt Stone, media-o e ansiava pelo seu confronto.
"Meteu-se com o gang e o gang vai deixá-lo no lugar",
pensou. À saida de Huntsville, Tommy e três outros motards assistiam ao
caminhar de Kurt Stone em direcção ao terminal de autocarros - aos
passos lentos e pesarosos, ao ar perdido e destanciado da multidão -
"Este tipo parece um zombie! Podemos apanhá-lo mesmo aqui no Texas e
despachar a coisa antes do meio-dia!" disse Tommy em tom de chacota e
logo ouviu resposta,
"Vais fazer como te mandaram e calas-te antes de
sequer pensares em abrir a bocarra! Este tipo tem levar com a marca dos
Steer Kings e isso acontece onde deve acontecer à hora em que os
adultos decidirem, comprende?".
O galgo cinzento lançou-se pela autoestrada e os quatro motoqueiros
abandonaram a perseguição, a próxima paragem era em Texarkana, Tommy
sentia o sacudir do colete à medida que a velocidade aumentava. O
Presidente tinha encarregue Aiden "Turk" Moss de "interceptar um certo
ex-condenado e passar a mensagem de que os 'Kings não esqueciam nem
perdoavam", tudo aconteceria o mais longe possível de casa. Com ele
seguiam mais dois veteranos, Bo "Diddley" Jones e Austin "Deuce" Hill,
para iniciar o "petiz" numa missão de honra.
Junto do terminal a multidão dispersava e apenas Kurt e mais duas
pessoas se mantinham sentados. Turk e Bo avançaram pela retaguarda
enquanto Tommy e Deuce se picavam com as motas pela frente, em jeito de
manobra de distracção. Rodando em círculos, enervavam visivelmente os
dois homens junto de Kurt enquanto este se mantinha sentado, impávido.
Tommy estava tão compenetrado nas manobras que mal ouviu o tiro para o
ar. Diante dele, o revolver fumegante do agente Morris aconselhava
prudência, enquanto o seu parceiro, Duff, apontava a Deuce -
"O espectáculo acabou rapazes, está na hora de partirem na direcção do sol poente! Não os quero voltar..." -
«Clic»
- "Lamento interromper, mas caso não tenhas percebido, isto foi o
cão. E a seguir vem o gatilho. Em que direcção achas que vamos?" interrompeu Turk, surgindo por trás do polícia. Logo Deuce aproveitou a deixa -
"Na da bagageira! Ah!"
gritou, rindo-se. Como dois cavaleiros pelo asfalto, Tommy e Bo
resistiam contra a saraivada de água que caía em Texarkana. Há vários
minutos que não ouviam as pancadas dos agentes Morris e Duff, a
malfadada escolta. Encafuados como malas velhas, enquanto Turk e Deuce
comandavam o autocarro.
A tarde passou a noite e o dia não se deixava ver, nem para a frente, quanto mais o fim. Nas palavras do último para Kurt -
"Foi uma viagem atribulada, mas só agora começámos". O jovem aspirante pensava no que aqueles dois iriam fazer... sair da cidade era obrigatório, mas o plano era não haver plano.
Perto de uma zona florestal, já nos limites da cidade, a caravana pára
sem aviso. A porta abre e Turk, seguido de Deuce, saem de mãos na nuca.
Bo e Crow nem tiveram tempo de reagir. O refém havia tomado controlo da
situação, frio e distante como sempre, segurava a arma no escuro. -
"Cheguem-se para debaixo da luz do candeeiro, é já ou não há depois!"
ordenou assertivamente, chegando-se para as motas. Sob ameaça de tiro, o
gangue assistia à pilhagem dos seus pertences, tal como no velho oeste.
Kurt segurou as correias da bolsa e atou-as às costas como uma mochila,
em seguida profere em tom solene -
"Gostei deste bocadinho, especialmente por ter sido curto. Até sempre meus senhores." e dispara seis tiros do revolver de Deuce.
Incrédulos, os cinco homens olham uns para os outros em choque, voltando
a mirar-se. A perícia de Kurt com as armas de fogo nunca tinha visto
melhores dias, ainda que infelizmente para ele, também não tivesse visto
piores: os tiros falharam o alvo, todos eles. Recorrendo ao mais básico
instinto animal, o condenado foge à desvantagem, lançando-se em corrida
para o mato em redor. Encharcado e amedrontado, Tommy mal se conseguia
mexer, enquanto Turk fugiu pelo mato deixando o resto do gangue para
trás.
Alguns segundos depois, Tommy, Deuce e Bo entraram no mato. Já no negro
da escuridão e percorrendo o lamaçal, os três homens resistiam ao medo e
ao frio. Passo ante passo, tacteavam as árvores e procuravam luz no
luar -
"O que é aquilo?!" exclamou Bo, referindo-se ao barulho
metálico que vinha da direita. Balançando como um pêndulo, avistaram o
cadáver de Turk pendurado num tronco, enforcado na corrente da mota. -
"...dass! O qué isto?!"
gritou o jovem rufia, virando-se para trás em horror. Antes que Deuce
pudesse reagir, Kurt sai da escuridão e atinge-o na nuca com um tronco
bicudo, desferindo de imediato um murro no nariz de Bo. O estalar do
osso do nariz de Bo propeliu Tommy para correr como os pés deixavam,
enquanto as pernas aguentassem. Kurt
havia-se tornado na figura do medo desesperante em pé ligeiro.
Escorregava e trepava, saltava e tropeçava conforme o terreno ajudava,
mesmo sentindo a vida a fugir-lhe a largos metros e em passo largo. A
sua única esperança era chegar à South State Line Av. e atravessar a
estrada (na verdade, cinco vias de trânsito), onde poderia procurar
refúgio num motel. Atrás de si, ouvia os lamentos indecifráveis do seu
companheiro, ainda agarrado ao nariz, inspirando o próprio sangue. Anos
de bebida e tabaco pesavam na respiração como nunca e depois de dois
minutos a correr, o ar parecia ter-lhes sido aspirado do peito.
Ofegantes e sem sentido de orientação, percorriam a linha de vista à
procura de uma luz, de uma casa, de um carro ou qualquer sinal de
auxílio. -
"Ele vem aí! Estás a ouvi-lo?" desesperava Bo. -
"Por aqui! Vamos!"
disse Tommy enquanto empurrava o colega, assumindo a liderança. Sem
fôlego, corriam descoordenados pelo bosque, almejando uma luz ténue para
lá do arvoredo. Já cegos pela esperança, escorregam num declive onde a
chuva fez a terra abater. Entre o chão e a cara de Tommy apareciam um
tronco e a pancada. Se antes se via mal, nesse momento as luzes
apagaram-se.
Voltou a si depois de ter perdido os sentidos por uns segundos e ao seu
lado, jurava que era a efígie de um demónio de olhos vermelhos,
esmurrando furiosamente a carcaça sangrenta de Bo, levantando no ar
pedaços de crânio e aquilo que parecia um globo ocular. Os dedos da mão,
ainda dormente, tremiam agarrados à terra.
"Também não me agrada
este trabalho mal-amanhado... diz muito pouco da minha pessoa, mas vocês
não vieram para conversar, pois não?" insinuou o demo em tom
macabro, logo se levantando. Retira da bolsa uma lata de lubrificante de
mota e abeirando-se de Tommy, sussurra-lhe ao ouvido
"Ora, conta-me lá um segredo, passarinho".